terça-feira, 16 de abril de 2013

ENCONTRO COM A ARTE



CONTOS
da
Daisy

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A velha entrou, com as duas mulheres atrás. Ligeira como uma rapariga, foi até ao fundo da sala e voltou, para se sentar no banco, junto à porta.
— Não vale a pena. Não podemos lá ir sem “ela” dar os papeis…
Tinha modos de criança, e o rosto enrugado possuía algo de meigo.
— Esperemos… “Ela” não demorará, tia Ferreira…
A mulher gorda, com aspecto de mais velha do que a outra acompanhante, consolou-a assim, meio risonha.
A velha olhou os outros doentes à espera, e murmurou, com ar aborrecido:
— Tanta gente…
Muita gente. E era sempre assim, desde que viera da terra para ali, para se curar. Saía lá da enfermaria, para fazer os exames… e encontrava a sala cheia, sempre.
— Há tanta gente doente…
E os olhos, húmidos, miravam tudo.
— Mas eu sou um velha “carcaça”. Não presto para nada… Inda que os novos se tratem… mas eu… eu não me curo, não. Já sou muito velha.
— Ora, ora, a tia Ferreira tira agora um “retrato”, vai ficar toda bonita e vai ver que já está boa e já se pode ir embora para a sua terra.
— Para a terra…
O pensamento voava-lhe. As esperanças de novo lhe vinham. Os olhos húmidos ficavam-lhe secos e a cara de menina-velha tomava vida.
Havia de ir para a terra. Havia, sim senhora! Ora ora, que estava ela com aquelas lamechices? Também, ela não era velha por aí além, que diabo! Diabo. Diabo, não! Não devia falar nele!... Pensar só em Nosso Senhor. Isso! Em Nosso Senhor e na Virgem… naquela lá da capela… na dos anjinhos aos pés… como se chama ela? O senhor abade é que sabia! Ora, era a Virgem!... Só há uma, porquê chamar-lhe tantos nomes? Pois, então, não falar do diabo — t’arrenego! — falar em Deus, na Virgem e nos santinhos… — e em seu Manel, sempre solteirinho, mas que havia de casar. Ai, havia, havia! Quando viesse lá das Franças… E ela havia de ver! Havia de curar-se! Havia! O “retrato” havia de ficar bonito, pró senhor doutor lhe dizer que já faltava pouco… Havia… havia…
— Mas é preciso a gente não respirar para ficar bem, não é?...
— Temos de encher os pulmões…
— Ah… e depois não se respira, não é?
— Pois é.
— Então é assim que farei!
E ficou-se, num mutismo que deixava adivinhar um mundo de pensamentos na cabeça baixa, de olhos no chão.
Aconchegou a túnica de flanela, o hábito do hospital, e disse, como se falasse consigo mesma:
— Pobre diabo, que nem saia tens…

27 de Julho de 1972






7 comentários:

  1. O mundo interior de uma pessoa idosa, presa no seu próprio labirinto de incertezas e uma ténue esperança de regresso às raízes. A componente religiosa e um Crer que é suporte de um querer regressar a um passado, mesmo que consciente de uma realidade demolidora, que se expressa numa lamuria:
    - Pobre diabo, que nem saia tens ...

    Bonito conto ...

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  2. Na escola primaria era o que se dizia para
    alguma rapaziada não fugir a sete pés.
    Tirar o retrato ao peito por dentro.
    Tonito.

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  3. Mais um excelente conto da Daisy que tenho o prazer de publicar

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  4. A temática da morte bem retratada nos pensamentos da velhinha e tão recorrente
    é neste último ciclo da vida...
    Excelente,revejo-me de uma forma saudável!
    Parabéns Daisy!

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  5. Que não se pense que as pessoas, mesmo quando se encontram em situações mais deprimentes, perdem a sua auto estrima e dignidade.
    Ainda bem que assim é, e a última frase do conto revela-o.

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  6. Obrigada por ires publicando os lindos contos da Daisy. Embora quase todos nós os conheçamos, é sempre agradável rever e enriquece o nosso blog.
    Beijinhos para a Daisy.

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  7. Mais um conto que encanta.
    Beijinho, Daisy.

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