... pormenor de Monsanto ...
Hoje, convido os amigos a virem comigo visitar Monsanto, aldeia cuja origem remonta ao período paleolítico, escondida nas profundezas deste rincão beirão e que dista cerca de vinte e cinco quilómetros da povoação de Idanha-a-Nova. A aldeia impressiona qualquer viajante desprevenido, que, tal como eu, pela primeira vez visite o local vindo de Sul. O acesso faz-se por uma estrada relativamente estreita e de bom piso, e, após vários quilómetros de planície, eis que um enorme morro granítico e escuro se ergue na paisagem agreste, e nada como recordar as palavras de Fernando Namora sobre Monsanto…”de longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu”…e, de facto, apenas os telhados de algum casario, nos faz perceber que chegámos ao nosso destino. Subo então por uma estrada sinuosa, até a um pequeno largo fronteiro à igreja paroquial, onde deixo o carro, pois o acesso ao centro da aldeia é feito a pé. As ruas são estreitas e escuras e chegado ao coração da aldeia viro á esquerda, subindo em direcção ao Castelo de Monsanto. A subida é íngreme, primeiro com casas escavadas na rocha de um lado e de outro, contrastando as que melhor estão conservadas, com vasos e canteiros floridos que lhe alindam a fachada, com outras que se encontram em estado de abandono, algumas já em ruínas. Após o último casario, entro agora por um caminho estreito, em terra batida, até que o Castelo, grande e bem conservado, se agiganta aos meus olhos. À esquerda deparo com a Capela de S. Lourenço, do século XII, em mau estado de conservação, bem como algumas sepulturas graníticas de um cemitério “paleo-cristão”. Por uma porta larga entro no Castelo, e tenho acesso a um largo terreiro. Subo então às ameias, onde a paisagem é deslumbrante e a perder de vista, com arvoredo disperso e alguns lagos a que na região dão o nome de “charcas”. O monumento é do tempo do Condado Portucalense, tendo sido erigido sob a orientação de Gualdim Pais e entregue posteriormente à Ordem dos Templários, com a missão de repovoar e defender toda a Zona de Idanha-a-Velha e Monsanto. Após a visita, sento-me agora numa enorme fraga junto às muralhas, e dali, por momentos, contemplo as enormes rochas graníticas de forma arredondada, que em equilíbrio que me parece instável se encavalitam noutras rochas de forma bizarra, com a sua massa granítica de muitas toneladas, e dou por mim a pensar na tragédia de uma daquelas pedras rolar em direcção à aldeia indefesa. Rapidamente tento varrer da minha mente aquela visão apocalíptica, para os meus olhos se deterem agora na aldeia ali aninhada aos meus pés, naquele fim de tarde. Sinto-me longe do mundo e perto de Deus, e, quase involuntariamente, dou comigo a rezar uma pequena prece, por intenção daquele povo. Corre agora uma pequena aragem que me afaga o rosto, e resolvo regressar ao centro da aldeia. O percurso faz-se agora com rapidez. Entro num pequeno comércio local, onde entre muitos artigos à venda destaco dois: as marafonas e os adufes. As marafonas são bonecas coloridas feitas de restos de tecido com armação em cruz e genuínas da aldeia, o adufe, de origem árabe, é uma pandeireta quadrangular bimenbranofone, exclusivamente tocada por mulheres. São célebres as Adufeiras de Monsanto, que no dia 3 de Maio – dia da Festa de Santa Cruz – sobem ao Castelo, tocando com vigor e mestria os adufes, enquanto as suas vozes e cantares inigualáveis, do alto das muralhas, ecoam e se perdem na planície sem fim, numa atmosfera que se afigura intemporal, quase de mistério. Saio do pequeno comércio e passo junto à casa onde residiu Fernando Namora, que ali viveu e exerceu a sua actividade de médico - escritor. As suas experiências de Monsanto, estão relatadas nos livros “Retalhos da vida de um médico” e “A Nave de Pedra”… Por uma azinhaga estreita encontro-me agora junto da Torre de Lucano, construída no século XIV sobre um enorme penedo e se de debruça sobre o abismo, qual sentinela avançada da aldeia a espiar os movimentos da campina. Detenho-me agora a olhar para o seu campanário e a réplica do galo de prata que foi conferido à aldeia em 1938, como a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, bem como o relógio da velha Torre, que de forma lenta e compassada, vai marcando o ritmo vagaroso de um Tempo sem tempo. É hora de partir. Cruzo-me então com um habitante da aldeia que se dirige a mim. Sem mais rodeios pergunta-me a proveniência, até que nos sentamos junto da Torre, onde com as mãos cruzadas sobre a bengala que lhe sustenta o peso de nove décadas de vida, me vai falando de um passado remoto, das privações e da fome dos anos 40, como que se justificando da sua dupla função de guarda - republicano e de contrabandista nas horas vagas, para complementar o seu magro salário e poder alimentar o rancho de filhos que a mulher lhe ofereceu pela vontade de Deus, amparados com desvelo no regaço da curiosa em funções de parteira, uma espécie de comadre que Namora também recorda. Despedimo-nos então, com um longo aperto de mão, olhando-nos nos olhos e percebendo intimamente cada um de nós, que aquele é um adeus definitivo, pois nunca mais nos voltaremos a ver. Meto-me no carro e serpenteio agora monte abaixo, entre aquele pesadelo de fragas, de novo citando Namora, para o automóvel progredir agora ágil e solto pela planície, com Monsanto a ficar para trás, plantada no meio da campina. Não resisto e paro de novo. Saio cá fora e fico por momentos apreciando aquela simbiose perfeita da Natureza com o casario, e pela última vez olho a Torre de Lucano, negra e altiva, guardiã da aldeia e desafiando os séculos, como que despedindo-se de mim e agradecendo a visita, e não posso de deixar de sentir um enorme respeito por aqueles meus irmãos, que vivem naquele Portugal profundo, portugueses como eu, um povo heróico…
Q.P (2008)
Em em 2000(?) Tuna Meliches em Sortelha, que afinal não é Monsanto, mas também é linda! AQUI
Em em 2000(?) Tuna Meliches em Sortelha, que afinal não é Monsanto, mas também é linda! AQUI
Visitei Monsanto várias vezes quando fui tropa em Penamacor. De todas as vezes me impressionei com aquele morro rochoso plantado na planície, qual sentinela dos intrusos “nuestros hermanos” que se aventurassem pela fronteira ali a dois passos.
ResponderEliminarVoltei a impressionar-me como se acabasse de a visitar agora, ao ler a descrição pormenorizada e rigorosa do Quito.
Vi outra vez a casa de Fernando Namora, vi outra vez o castelo altaneiro, tive a mesma sensação de angústia que o Quito descreve e que de todas as vezes senti, ao imaginar o que seria se um daqueles gigantescos calhaus desatasse a rolar encosta abaixo.
Claro que sentir e ver tudo isto, com um realismo quase palpável, só é possível quando o que lemos tem a qualidade de um escritor, a qualidade dos textos do Quito.
De acordo com o que já disse ao caríssimo Fernando Rafael, vou colocando no blogue, de quando em vez, textos do passado. Eventualmente, alguns dos amigos não terão lido. Isso mesmo me lembrou o Rafael, incentivando-me a fazê-lo. Com algumas alterações trouxe de novo este texto até Vós. Aquele pesadelo de fragas sempre me impressionou. Ao meu amigo Rui Felício, agradeço o comentário. Apenas a amizade que nos une, o faz elevar-me a um estatuto que não tenho.
ResponderEliminarAbraço a todos
Quito
ResponderEliminarAinda bem que colocaste este texto do passado pois nunca fui a Monsanto mas até parece que fiquei a conhecer, pois deste-me a oportunidade de passear contigo nessa terra maravilhosa como descreves. Aproveitei para voltar a ler "O Adufe" que dedicaste ao Rui Pato. Quem já tocou esse instrumento foi o Rafael mas agora... prefere o bombo. Os tempos mudam. Obrigado por esta maravilha.
Bela "viagem",Quito.
ResponderEliminarDescobri Monsanto já muito tarde.
Para aí em 75 ou 76.
Depois do meu velho Renault conseguir trepar até ao Largo,suponho que em piloto automático,fiquei uns instantes sentado porque tinha perdido a respiração.
A sensação foi como descreves.
Voltei lá duas ou três vezes.
Mas o murro inicial já não aconteceu.
Nos tempos em que andava por aí à procura do país também me aconteceu no Marão.
Obrigado por me recordares estas sensações fundas.
Pode ser que numa estada em Monfortinho a coisa se volte a proporcionar.
Ja visitei várias vezes a Aldeia de Monsanto, .
ResponderEliminarComo vês mesmo sem lá ter ido o Chico Torreira ficou a conhecer Monsanto, pois a descrição está perfeita!
Como estava sem sonotone e óculos confundi Monsanto com Sortelha...
Mas Sortelha também é bonita, pronto!
A São Rosas e o Carlos Carvalho já me puxaram as orelhas(é coisa que ainda tenho)...
De qualquer forma podem lá ir ver umas imagens de Sortelha!
Quito, durante alguns segundos suspendo unilateralmente a nossa amizade...
ResponderEliminar**** INÍCIO DE SUSPENSÃO DE AMIZADE *****
...para te dizer que esse excesso de modéstia merecia um calhau de Monsanto em cima.
Já há muito que devias ter enviado os teus textos ao Jornal do Fundão, mas os teus textos são intemporais. Por isso, estás sempre a tempo.
**** FIM DE SUSPENSÃO DE AMIZADE *****
Abre aço!
Quito, recordar Monsanto é fazer-nos lembrar aquela joia valiosa que temos guardada e que caiu no esquecimento.
ResponderEliminarDescreves com mestria Monsanto e todos aqueles recantos que já visitámos por diversas vezes. Bem-hajas (à beirã).
Abílio
Monsanto já era merecedora de um texto com a assinatura Quito!
ResponderEliminarBela aldeia, que conheço, sempre bom de revisitar.