sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

INDECISÃO


Não sei se me quero deixar levar por este desejo novo e inesperado que me surpreende, não sei se quero viver até sorver esta quimera que parece dizer-me: “venho questionar as tuas certezas demasiadamente ancoradas”.
Como recusá-lo? Negá-lo é demasiado fácil e demasiado difícil ao mesmo tempo...
Recusa-se um copo de champanhe? Sim, parece que às vezes devemos afastá-lo, com o argumento de que se quer evitar a dor de cabeça ou a indisposição que se lhe pode seguir. Se o recusar, resta-me o prazer de admirar a textura do vidro, a observação do liquido efervescente, a contemplação da sua cor subtil, a captação das exalações capitosas que dele emanam. Sem nunca tocar nem provar o divino néctar, terei roçado, apenas virtualmente, o suave deleite que me invade como um maléfico mas gostoso veneno. Mas, incompleto, sabe-me a frustração...
O meu lado cartesiano diz-me: São futilidades! Reage! Esquece!

O meu lado físico, carnal, incapaz de resistir à tentação, responde-lhe: Descartes, deixa que o corpo se entregue a este convite tão sedutor. Em plenitude!

Suspiro, sim suspiro. Suspiro de impaciência porque o recuso, mas suspiro também de esperança no meu ardente desejo de concretizá-lo.
Estranho esta vontade meio etérea, meio real, que emergiu de repente de nenhum lado, ou, melhor dito, de nenhum lugar preciso. E no entanto, eu já antes conheci este desejo muito físico, muito desconcertante, sem nunca o saciar.
Conheço a dor e o tormento da indecisão. É normal quando se é jovem. Na juventude, ela explica-se pela natural timidez, pela inexperiência e pelo receio da novidade. Nesse tempo, o desejo fica guardado como um segredo. A sete chaves...
São vontades originadas pela pura atracção, pela presença muito carnal, ou mesmo e unicamente, em resultado da sua simples existência.
Mas agora, com esta idade, é diferente. Parece que acedo a um desejo já de uma nova geração, aceso por partículas ou electrões, ou mesmo por um pensamento subliminar ou telepático, sendo eu, ainda para mais, precisamente de uma outra, mais antiga e mais conservadora geração.

Deste desejo, deste tempo forte, como em música, conheço-lhe a mecânica e o desenrolar, e sobretudo, o desânimo por não ser tangível a sua causa motivadora.
Para não sofrer, aceito a realidade com racionalismo, com uma capa de distanciamento e frieza, antes que a fraqueza se instale, como nas pausas da música que antecedem a apoteose .

Rui Felício

17 comentários:

  1. Um belíssimo poema! Poema, sim! Para mim esta prosa é autêntica poesia.
    Muito bom! Obrigado.

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  2. A questão,caro amigo,é que o teu texto aborda um tema importante e que,por falta de coragem,muitos dos grandes escritores(em poesia ou prosa) se recusam a "cheirar".Eu sei que me podes dar meia dúzia de exemplos de contradita.Mas são excepções.
    Há dois ou três séculos que o preconceito se instalou e o tema passou a ser tabu ou ridicularizado ao limite.
    Humanamente será difícil de o enfrentar:metade do cérebro diz-te avança;a outra metade diz-te tem juízo.
    E haverá sempre uma velha gozona que não deixará de dizer:não vês que ela podia ser tua neta?!
    Aí instala-se a luta interior e não faço ideia qual é a metade do cérebro que ganha.Quem vence sempre é o íntimo.
    Mesmo que não se possa beber o belíssimo champagne,pode-se tocar o flute e sentir as suas formas bem como a macieza do cristal.
    Uma espécie de 'platonismo pessoano'?!

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  3. Este é muito profundo!
    Tenho que ler vários comentários para depois tirar a bissectriz!
    O Rui, não o Felício mas o Lucas, deixa-me meio "lucas" como desenvolve o comentário!
    Então aquela da gozona...

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  4. De acordo...amigo Alfredo! Isto não é prosa, isto é poesia, tal como muitos dos textos do Manuel Bastos, que eu vou "insistindo" em divulgar no Blog.
    Abraço Rui Felício!

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  5. Na vida há tempos e o tempo.
    Tempos em que tudo´se vence. Em que um oceano é transponível em duas vigorosas braçadas, em que uma montanha se assemelha a uma simples duna.
    Depois vem o tempo que nos ensina, nos avisa, nos previne que os tempos que passaram já passaram.
    É neste tempo que temos que saber abençoar o tempo que ainda temos. Acarinhando-o, aproveitando cada milímetro e segundo que o tempo resolveu que ainda é nosso.
    Depois virá a apoteose, sabemos.
    Mas venha só quando tiver que vir, mas venha só depois de termos sabido aproveitar o nosso tempo
    e depois de termos esgotadas todas as notas da partitura.
    E, sendo assim, que ninguém tenha pena de nós.
    Missão cumprida, concerto finalizado ao som de Aleluias...

    Abraço.

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  6. Adorei este artigo do Rui Felício, que dentro de um estilo subtil que lhe é muito próprio, nos expõe realidades da vida.
    Pelo meu lado, hoje vou vivendo a vida como ela se me apresenta e se possível melhorando-a, pensando puder continuar a ler artigos deste nível. Bem hajas.

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  7. Que lição!
    Se isto não é erótico eu não sei o que é erótico!
    Rui, esta pérola tem que ir também para o blog porcalhoto.

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  8. E a emoção sobrepõe-se ao racionalismo...este belo texto ajuda-me e não ajuda nesta brutal indecização,desistência em que me encontro...a tristeza de não estar a ser capaz de sorrir está instalada!
    Também vou conseguir ultrapassar este desanimo...é preciso porque alguém precisa de mim e isso é factor mobilizador!
    Obrigada,Rui pelo teu profundo texto.

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  9. Olindita, queres que eu vá procurar para ti uns bichos menos carpinteiros? Nos chineses devem ter...

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  10. Considero este texto um momento alto do blogue.
    Várias vezes o li, como se bebesse uma flute de champanhe, a transbordar de sentimentos. Contraditórios, sim. A coragem,e a sensibilidade de quem, de uma forma harmoniosa, toca num assunto sensível e até proscrito por uma corrente mais conservadora. O Rui, o Rui Felício, é um escritor. Um escritor de mérito. Agradeço-lhe este momento de poesia. Não posso deixar de dar uma palavra de admiração, a alguns comentários feitos neste âmbito. Perdoar-me-ão falar no Rui Lucas e do Carlos Viana. Bela reflexão e prosa destes dois amigos. E agora uma confissão: tinha um texto de uma tarde que partilhei com o Eusébio em Moçambique e que seria para postar hoje. Não o farei.Ficará para mais tarde. É um texto feito ao correr da pena e que iria "manchar" este texto magnífico do Rui, quando colocados lado a lado. Seria um borrão, numa folha de papel branco. Optei por outro, mais a apelar há minha maneira de sentir. Não com uma prosa deste calibre - não tenho condições intelectuais para isso - mas a dar aquilo que Vos posso oferecer deste lado da montanha. E quem dá o que tem ...
    Obrigado Rui ...

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  11. Eu não disse que o texto(lido por mim 6 vezes) é muito "profundo"?
    Continuo a deliciar-me com os comentários...
    Mas Quito essa desconsideração feita ao Eusébio também é demais...
    E não te chores"com essa falta de condições intelectuais"!
    Deixa isso para mim!

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  12. Sensibilizam-me os comentários,como é natural.
    Mal me ficaria não os agradecer, para mais sabendo que muito do que é dito é ditado em boa medida pela amizade e pela simpatia.
    É que, no estado de melancolia que atravesso e que este texto acaba por refletir, sobrevalorizo muito mais essa amizade do que tudo o resto.

    Uma nota especial para o que disse o Rui Lucas que tocou no âmago da questão.
    O platonismo é de facto a ideia que subjaz à minha reflexão. O que não é muito saudável...

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  13. Não é saudável,dizes tu.
    O íntimo é que diz o que é saudável:quando sabe bem não faz mal.
    Como diz o Viana,a vida é para ser vivida nota a nota até ao fim da pauta.
    Lembro-me de ouvir dizer,quando criança,que era preferível comer um pedaço de pudim com os amigos do que ter um balde de porcaria só para si.
    A vida,quando a levamos baseada no fundamentalismo dos princípios,é pornográfica.
    Temos que ter alguma sensibilidade para a transformar em erótica.
    Creio que a partir daí ela é agradável e apetecível.
    Um abraço.

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  14. Deliciei-me a ler e a reler o teu texto, não só pela categoria ccom que escreves, mas, e sobretudo, pela abordagem dada ao tema.
    Nesta fase da vida eu optaria pela atitudo do teu último parágrafo "Para não sofrer aceito a realidade com racionalismo..."
    Assim a indecisão te tenha levado a boa escolha!
    Sê feliz.

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  15. Amigo, só agora li o teu texto.

    Fiquei encostado à parede perante a angústia que te invade, perante o impasse em que te encontras entre o estar e o ser. Preconceitos.

    Cada um vive cada segundo que passa uma só vez, e, amanhã podemos nos arrepender do que hoje vivemos, construindo esse amanhã no confronto permanente de termos recusado aquela felicidade possível e plena (se isso é possível) que sempre iremos pensar ter perdido.
    De que vale admirarmos o cristalino reflexo do champanhe numa taça de cristal, na contemplação abstracta, querendo mas sem poder por força de quem tem capacidade para superar o impulso de degustar e aprofundar o seu conhecimento?
    De que nos serve ficarmos pela mera e circunstancial contemplação?

    Liberta-te da tua caverna (como escreveu Platão) que te enredou e prende, há sempre um mundo novo que nos aguarda em cada momento de futuro.

    Não se vive (esta vida) duas vezes.
    Segue em frente o amanhã pode não existir jamais.

    Um abraço
    Abílio
    _______________________________________________
    Só mais uma palavra, gostei da subtileza e delicadeza do teu texto, da reflexão que fazes em que te “despes” e te revelas, um entre outros, pleno de dúvidas e receios que sempre têm acompanhado o homem desde que gerou o conflito entre a razão e o impulso.

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  16. Meus Caros Abilio, Carlos Viana e Rui Lucas,

    Sou o que sou!
    Moldado num impenitente racionalismo,numa intrinseca timidez,numa sistemática dúvida cartesiana,num idealista sentido de justiça e de equilibrio,numa dialética constante,num respeito exagerado pela imutabilidade de certos principios, morais e éticos, no medo do desconhecido, torno-me incapaz de aceder impulsivamente ao imprevisto.

    Contudo, algumas raras vezes, excepcionalmente,cedi a impulsos, de forma irracional, intempestiva.
    E, por estranho que me tenha parecido, com resultados positivos. Com êxito!

    Tal, porém, não me fez mudar.
    A indecisão acaba sempre por se instalar, com todo o sofrimento que ela acarreta.
    E quando o arrependimento vem, já é tarde...

    Dou-vos razão, mas sou como sou...

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