... uma solidariedade surda ...
É como se o meu Passado estivesse esculpido a escopro e cinzel na pedra crua. Quero deixar para trás as minhas memórias pardas. Mas não consigo. Perseguem-me, como se fossem a minha própria sombra. E recordo aquela tarde de Julho. Um dia como qualquer outro, na rotina opaca da guerra. Em fila indiana, percorríamos o trilho. Uma calma densa pairava sobre as nossas cabeças. Com os nervos em franja, palmilhávamos quilómetros sem fim, na procura do objectivo longínquo. De repente, uma bátega de água abateu-se sobre nós, deixando-nos encharcados até aos ossos. Ao longe, por entre o cordão ondulante de calor, divisávamos a silhueta rochosa da zona do Boé. Apetecia-nos abrigar na cavidade das rochas, uma espécie de instinto de defesa, mas a lógica da guerra bruta, obrigava a prosseguir a Via Sacra. Agora, o trilho era de lama, o que nos travava o passo. A progressão era lenta. As botas atascavam-se na bolanha. Refugiado no meu lento penar, eu olhava os outros. Havia entre nós uma solidariedade surda, que nos levava a resistir até ao limite. Sabíamos que se um companheiro caísse de exaustão, muitos braços robustos se mobilizariam a levantá-lo. Sitiado nos meus pensamentos, vou duvidando da nossa capacidade de resposta, em caso de confronto com o antagonista. Estávamos esgotados e desejosos de regressar à penumbra do abrigo. E assim foi. Quando a bola de fogo, de cor escarlate, já descia no horizonte, secando as nossas fardas enlameadas, entrámos no quartel. Junto ao poço de água me sentei, com o soldado Baca Sanhá. Com o rosto marcado pelo esforço, sorrimos e bebemos do mesmo cantil. Tirámos as botas e cada um seguiu para o seu destino descalço, com a espingarda ao ombro, presa pelo cano, como se fosse um cajado. Na sombra da caserna, alguns camaradas de armas já descansavam nos seus humildes catres. Fora longa a caminhada. Atirei-me para cima da cama e adormeci. Não encontrámos o inimigo, mas tínhamos sido vencidos pelas forças da Natureza.
Q.P.
Q.P.
O amigo Felíco - ele próprio o disse neste espaço - encontra-se em África. Naquele local, ele e eu, entre milhares, muito penámos. O Rui, pediu-me para que eu escrevesse algo no blogue, sobre um qualquer tema. Entendi, de novo, recorrer a pedaços das minhas memórias cinzentas da guerra. Já tive oportunidade de dizer ao Rui por e-mail, remetido para África, que este texto lhe é dedicado. Dedicado a um ex-combatente. E a um amigo. Como também tive oportunidade da Lhe dizer, que gostava de lá estar, para me aperceber da nova realidade de uma terra que, apesar dos tormentos, ficou gravada nas nossas vidas. Tenho consciência de que este tema não é caro a alguns, que repudiam falar-se deste passado nebuloso. Mas não coloquemos uma pedra por quem muito deu de si. Muitos, até, inglóriamente e sem sentido, a vida.
ResponderEliminarPara ti, meu caro Felício, o desejo de um regresso breve...
O Rui Felício lá voou mais uma vez para a Guiné!
ResponderEliminarPor ventura nem sabe bem quantas vezes já o fez após o regresso a Portugal com o términus da sua missão no cenário de guerra!
Mesmo sendo por motivos profissionais(penso eu), deve dar-lhe um certo prazer voltar aquelas paragens revivendo algumas daquelas paisagens!
Desta vez ainda serviu de pretexto para que o Quito, depois de uma longa caminhada a debater-se com o inimigo computador, reatasse a relação com a net com mais este excelente texto!
Foi uma caminhada longa, molhada e enlameada...mas ainda bem que não encontraram o inimigo!
A lama, essa sempre deu algum trabalho a Mariema...
Não se renega o passado porque ele é o alicerce do futuro. Se soubermos dele aproveitar os ensinamentos positivos e repudiar o que de mal contém.
ResponderEliminarMuito mais quando se trata de África, das suas gentes, dos seus costumes, da beleza daquelas paisagens ainda preservadas.
Ler o Quito é fechar os olhos e "ver" o que nos conta.
Parafraseando Paulo de Carvalho, desta vez só me apetece dizer-te:
...gostava de te ver aqui... agora!
É um pequeno pormenor, mas ele explica a "surda solidariedade" que dá mote ao texto:
ResponderEliminar..."sorrimos e bebemos do mesmo cantil"...
O Quito está a falar de um soldado guineense ( Baca Sanhá ). Naquelas circunstâncias a solidariedade não é palavra vã, incomparávelmente diferente e verdadeira quando nos quedamos na nossa postura europeia de falsa superioridade e de egoismo preconceituoso.
Vale a pena meditar neste pormenor...
A velocidade do tempo, nem sempre nos “deixa” atónitos. É salutar e bom lembrar o que fomos, . . .o que fizemos, . . .e por vezes o que deixamos por fazer. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderEliminarA viagem ao passado, leva-nos em certa medida a não nos afastar do que fomos, e determinar para onde queremos ir, sem negar os valores e os princípios, que são os pilares para todos os ensinamentos.
Uma "solidariedade surda". Ou uma "surda solidariedade", como diz o Rui. Uma solidariedade feita de silêncios. De entreajuda. De amizade. Quase de amor fraternal. Pelo compatriota que vai à nossa frente na "picada" e nasceu no Minho ou no Faial. A escassa água que se partilha do cantil, para molhar os lábios ressequidos. O resto da lata de atum, que se abre com um canivete. O último cigarro do maço, partido religiosamente ao meio. Sempre em silêncio. Esta é a poesia da guerra.
ResponderEliminarValeu a pena esperar pelo fim da guerra que travaste com o teu computador.
ResponderEliminarMais um texto que nos enche a alma e faz saltar o coração.
Obrigado.
É isso, Quito. De facto, o que mais ressalta deste teu texto é a solidariedade surda, eu diria surda e muda porque dispensa palavras, que é filha da enorme necessidade de ajuda mútua entre pessoas que sofrem das mesmas contrariedades, que receiam os mesmos perigos, que dividem entre si as mesmas agonias e anseios.
ResponderEliminarO "passado nebuloso" a que te referes no teu primeiro comentário, nada tem a ver contigo enquanto nebuloso. Sempre nos tens transmitido, através de todos os teus textos que abordam o tema África, um passado límpido, sofrido, um passado de quem pode ter orgulho no seu passado.
Recordas África sempre com carinho, com respeito pelas suas gentes, pela sua cultura.
Essas tuas recordações são bem-vindas e podes ter a certeza que estás absolutamente absolvido por esse "passado nebuloso" que foste obrigado a viver.
As tuas histórias de África, tal como as do Rui Felício, bem poderiam fazer parte de uma colectânea que nos falasse da parte saudável da guerra colonial.
Porque descrições doentias, de alguns de nós que fizeram da guerra colonial o seu espaço de afirmação como heróis, quais "Rambos" dos anos sessenta, dessas descrições não falta literatura. Claro que só a lê quem quer...
Um grande abraço para ti e fico muito contente por saber que o computas já fez as pazes contigo.
Outro grande abraço para a Guiné, na esperança de que teremos notícias da África actual muito em breve.
Não digo que tenha valido a pena, porque uma guerra nunca vale a pena. Menos ainda para quem foi obrigado a fazê-la contra a sua vontade, contra o seu ideal, contra a sua razão.
ResponderEliminarMas valeu a pena comungar da solidariedade humana que só se sente em plenitude nos momentos de maior adversidade.
É no meio da mais atroz lixeira que nos desvanecemos e comovemos com a beleza de uma singela flor que ali floresça e que, no meio de um cuidado jardim passaria despercebida...
Como diz o Quito, e bem, a poesia está em todo o lado. Assim a queiramos ver...
Estive em Angola.
ResponderEliminarNo assunto pus em cima um calhau do tamanho da Serra da Estrela.
ACABOU.
Tonito.
Pois é, meu caro Tonito, estás em teu pleno direito. É uma memória que resolveste selar e ninguém poderá contrapor qualquer razão para que o não faças.
ResponderEliminarMas os homens reagem de forma diferente ao mesmo fenómeno. É uma das características do ser humano.
Não somos máquinas...
Agora, de uma coisa estou certo. Se resolvesses retirar o calhau, haverias de nos mostrar uma singela flor descoberta no meio da mais atroz lixeira...
Também estive em Angola.
ResponderEliminarO calhau continua em cima daquilo.
Não tenho dúvida que há flores,mesmo debaixo do calhau.
Mas,por enquanto,prefiro que o calhau não seja removido.
Um abraço.
...
ResponderEliminarQuito
ResponderEliminarPara mim o falar-se da guerra ou não, não tem nada a ver com a minha existência no passado mas sim como vivo hoje esse passado e que procuro não transferir aos outros que nunca lá andaram, porque de paz e amor precisam eles. É certo que se estivermos juntos a falarmos entre nós, não tenho nenhum problema sobre o assunto. São momentos que fazem parte da minha vida e comigo hão-de ir. Por vezes com uma ou outra situação idêntica, até sentimos esses momentos de forma bem diferente, como já me apercebi num artigo ou num comentário passado neste blogue. A época ou o tempo também conta. Um texto deste não tem nada a ver com uma acção de combate directa mesmo que seja exposta em sentido figurado, que muitas vezes leva a que a carga negativa fique retida no cérebro de quem lê. Por outro lado, a outros pode vir reavivar momentos passados que os levem a arrepiarem-se novamente. No meu caso também tive momentos de intensa alegria e felicidade, profunda e sentida muito especialmente com a solidaredade expressa das mais variadas formas entre nós, pois dávamos valor às mais pequeninas situações. Jamais me esquecerei que entre outras coisas, num dia de anos, recebi um bolo de arroz com uma vela em cima a arder quando estava em Mueda, que os meus colegas me ofereceram e que nunca tinha acontecido. Também não esquecerei ter visto no fim da guerra beligerantes antagónicos abraçarem-se, beberem cerveja juntos, contarem os truques que tinham tentado aplicar uns aos outros, admirados de os oponentes estarem vivos e a saudarem com a caneca na mão sem preconceitos. Vivi isto. Paradoxo mas real e maravilhoso, pois estava ali a prova que aqueles homens não eram maus pois não ficaram com ódio, tinham era sido mal utilizados. Para mim este texto fala-nos de solidariedade escrita por ti e como tu sabes expôr, neste caso até gostei de ler.
Um abraço.
Caro Chico
ResponderEliminarÉ apenas da outra face da guerra que me interessa falar. Desde o tempo do "Cavalo Selvagem", que colaborei com cerca de uma dezena de textos do tempo da Guiné. Apenas por uma vez, me apeteceu trazer perante os amigos - e provavelmente também perante aqueles que me detestam - a realidade violenta que vivi com um grupo de camaradas de armas em Bissau. O texto, chamava-se "drama no cais" e foi mesmo um drama.
Mas por lá fui testemunha de momentos de grande solidariedade e fraternidade. Esses momentos, ficarão para sempre. Mesmo em cenário de confronto.Terá sido na guerra, que mais vi sobressaírem os mais nobres sentimentos do ser humano. Percebeste, como alguns amigos entenderam, que não falei de guerra. Falei da amizade e da solidariedade com que se passava um cantil de mão em mão, para repartir a pouca água existente. Como foi dito aqui com muito acerto, pelos amigos que ainda vão tendo a paciência de dialogar comigo, por vezes, debaixo de uma pedra está uma flor.
Abraço