...homenagem de Mira às gentes do mar ...
Peço desculpa aos meus amigos. De novo Vos convido a percorrer comigo os caminhos da saudade. Da minha saudade. Vão ter que me aparar as tempestades da alma, enquanto remo insistentemente na procura de um Lugar remoto. Perdi o sentido do Tempo e da Existência. Vagueio ao sabor da corrente. Vou revolvendo o Passado pedra por pedra, na procura de algo que me conforte, por entre os escombros das minhas memórias. E hoje, lembrei-me de uma singela povoação. É ali, no “Casal de S. Tomé”, perto da Vila de Mira, que hoje lanço âncora, fazendo desfilar diante dos meus olhos, um filme de gratas recordações. À volta daquela mesa, no dia da matança do porco, nem todos eram pescadores. Também guardas - florestais da Mata de Mira e até um ourives.
Lá fora, no pequeno alpendre da casa, uma mulher idosa e avantajada, de luto vestida , sentada num pequeno banco de madeira, mexia vagarosamente o caldo, com uma colher de pau, diante de uma enorme panela de ferro preta. Na sala, na pequena sala, os homens sentavam-se ao redor de uma mesa. Falavam, sobretudo, das coisas do mar. E o Abílio, magro e lívido como um círio, de pescoço esguio, barba por fazer e uma proeminente “maçã de Adão”, lembrava a Terra Nova e a pesca do bacalhau, onde comeu o pão que o diabo amassou. Esteve em coma com um grave acidente no barco. Foi levado para terra firme, mas quando teve forças suficientes, regressou à faina. Precisava do dinheiro. Tinha em casa a mulher e os filhos que Lhe reclamavam o pão. Os outros ouviam, num silêncio magoado. Mas nada como uma travessa de rojões e uma jarra de vinho tinto bem espesso, para animar a conversa. De repente, aquele interlúdio dramático, desfez-se em mil palavras. Falavam todos ao mesmo tempo. Havia mais vida para além do mar. As mulheres, antes de se sentarem nos seus lugares, afadigavam-se nos últimos pormenores. Era uma mesa pobre e singela. Mas rica em amizade e solidariedade. A amizade fraterna, sobretudo daqueles que tinham que vencer, em conjunto, a próxima onda. Talvez por isso, um crucifixo na parede e um colorido quadro da “Última Ceia de Cristo”, ajudavam a perceber da religiosidade daquela humilde comunidade. E, perfilando-se entre os mais crentes, as gentes que dobravam a barra. O ourives, baixo e atarracado, com um palito ao canto da boca, bocejava sonolento e farto do lauto banquete, como a jibóia que tinha acabado de engolir a presa, enquanto se derramava pelos fundos cadeira. Murmurava frases ininteligíveis. Mas foi cordial para comigo. Empurrou a terrina da sopa fumegante na minha direcção e rosnou-me em tom imperativo: … sirva-se… . Por entre canja de galinha, rojões e fêveras, assim passámos a noite. No fim, um abraço ou aperto de mão caloroso. “Para o ano há mais”, dizia-me o Clemente, já meio pingueiro. E, de baixo do braço, sem direito a resposta nem agradecimento, meteu-me um viçoso molho de couves.” São da minha horta”, acrescentou, orgulhoso. Depois, o enorme portão de ferro castanho que dá acesso ao pátio, fechou-se gemendo nos gonzos. Meti-me no carro e parti. E na extensa recta que une a Vila de Mira a Cantanhede, revivi aqueles momentos sorrindo, tentando descodificar o filosófico prosar do Manelão de Portomar, que em Terras de Vera Cruz, mourejou durante várias décadas pelo sustento que o berço - pátrio Lhe negou. Tempos de outrora, que hoje me atrevi a compartilhar convosco, agora que de novo regressei ao meu recanto beirão …
Q.P.
Lá fora, no pequeno alpendre da casa, uma mulher idosa e avantajada, de luto vestida , sentada num pequeno banco de madeira, mexia vagarosamente o caldo, com uma colher de pau, diante de uma enorme panela de ferro preta. Na sala, na pequena sala, os homens sentavam-se ao redor de uma mesa. Falavam, sobretudo, das coisas do mar. E o Abílio, magro e lívido como um círio, de pescoço esguio, barba por fazer e uma proeminente “maçã de Adão”, lembrava a Terra Nova e a pesca do bacalhau, onde comeu o pão que o diabo amassou. Esteve em coma com um grave acidente no barco. Foi levado para terra firme, mas quando teve forças suficientes, regressou à faina. Precisava do dinheiro. Tinha em casa a mulher e os filhos que Lhe reclamavam o pão. Os outros ouviam, num silêncio magoado. Mas nada como uma travessa de rojões e uma jarra de vinho tinto bem espesso, para animar a conversa. De repente, aquele interlúdio dramático, desfez-se em mil palavras. Falavam todos ao mesmo tempo. Havia mais vida para além do mar. As mulheres, antes de se sentarem nos seus lugares, afadigavam-se nos últimos pormenores. Era uma mesa pobre e singela. Mas rica em amizade e solidariedade. A amizade fraterna, sobretudo daqueles que tinham que vencer, em conjunto, a próxima onda. Talvez por isso, um crucifixo na parede e um colorido quadro da “Última Ceia de Cristo”, ajudavam a perceber da religiosidade daquela humilde comunidade. E, perfilando-se entre os mais crentes, as gentes que dobravam a barra. O ourives, baixo e atarracado, com um palito ao canto da boca, bocejava sonolento e farto do lauto banquete, como a jibóia que tinha acabado de engolir a presa, enquanto se derramava pelos fundos cadeira. Murmurava frases ininteligíveis. Mas foi cordial para comigo. Empurrou a terrina da sopa fumegante na minha direcção e rosnou-me em tom imperativo: … sirva-se… . Por entre canja de galinha, rojões e fêveras, assim passámos a noite. No fim, um abraço ou aperto de mão caloroso. “Para o ano há mais”, dizia-me o Clemente, já meio pingueiro. E, de baixo do braço, sem direito a resposta nem agradecimento, meteu-me um viçoso molho de couves.” São da minha horta”, acrescentou, orgulhoso. Depois, o enorme portão de ferro castanho que dá acesso ao pátio, fechou-se gemendo nos gonzos. Meti-me no carro e parti. E na extensa recta que une a Vila de Mira a Cantanhede, revivi aqueles momentos sorrindo, tentando descodificar o filosófico prosar do Manelão de Portomar, que em Terras de Vera Cruz, mourejou durante várias décadas pelo sustento que o berço - pátrio Lhe negou. Tempos de outrora, que hoje me atrevi a compartilhar convosco, agora que de novo regressei ao meu recanto beirão …
Q.P.
Duas imagens me ficaram na retina ao ler este texto do Quito:
ResponderEliminar- Interlúdio e Jibóia-
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Interlúdio, do latim interludus,i, é a aglutinação de duas palavras ( inter+ludus), a primeira significando “entre” e a segunda “distracção, divertimento”.
O seu uso era comum nos espectáculos da elite romana, para ser feita a ligação entre as várias partes, por forma a manter os espectadores atentos e evitar os intervalos que , de outra forma, quebrariam o ritmo e se tornariam enfadonhos.
Hoje, a palavra interlúdio, é usada para designar momentos musicais breves que servem de ligação entre duas peças de música ou entre dois actos de uma ópera.
O Quito, sendo como é, pai justamente orgulhoso de um pianista, usou, embora não propositadamente, esta palavra no seu texto, por ter no seu subconsciente a reminiscência dos muitos espectáculos musicais a que assistiu com o seu filho André como protagonista.
Todavia, no texto que publica, à semelhança dos outros com que regularmente nos brinda, tal interlúdio é desnecessário, senão mesmo inadequado.
Porque na leitura que deles fazemos, sempre ficamos presos de princípio ao fim, sem pausas ou tempos mortos e, portanto, sem necessidade de recurso a interlúdios ou divertimentos intercalares para os colmatar.
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Jibóia, cobra corpulenta, não venenosa mas tremendamente mortífera quando, com a sua força esmaga a ossatura de qualquer humano que se lhe atravesse no caminho.
Muitas havia na Guiné onde eu e o Quito as conhecemos.
Perfeitamente real a frase com que o Quito quis descrever o ourives depois do almoço:
“( ... ) bocejava sonolento e farto do lauto banquete, como a jibóia que tinha acabado de engolir a presa (...)”
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Quanto ao Abílio, pela descrição fisionómica, dá para ver que não se trata do “nosso” Abílio Durão...
Ainda me lembro de ir ver a ordenha das vacas, de andar de "pasteleira" ou das jogatanas de bola no largo da igreja ...
ResponderEliminarBons tempos ...
De facto, interlúdio associa -se a distracção ou divertimento musical,como momento intercalar para apresentação de um qualquer evento ou espectáculo. Vi isso (e até consultei dicionário) antes de aplicar a palavra no texto. Mas decidi mantê-la, no contexto de um momento dramático, quando o pescador conta a sua dramática aventura na Terra Nova. No meio da confraternização, aconteceu esse momento, ao qual "associei" uma música de fundo como complemento de um drama. Naturalmente, que ao ter vivido pela boca do Abilio tal momento que aconteceu nos mares da Terra Nova, recreei esse facto - esse hiato de tempo (interlúdio) em que a conversa teve tons cinzentos - associando-lhe uma música de tons bem escuros. Porém, admito, que o termo possa estar - e estará - inadequado para quem lê, embora eu, como protagonista que fui daquele jantar, tenha mantido propositadamente a palavra "interlúdio" num contexto que foi real e dramático ...
ResponderEliminarAo Rui, agradeço todas as circunstânciadas explicações sobre o termo, embora eu lhe conhecesse o significado. Também a palavra "círio" suscitou-me algumas dúvidas. Mas é realmente uma vela branca (lívido como um círio) usada em cerimónias religiosas ...
Que se não veja nenhuma critica ou reparo ao uso da palavra interlúdio. Que está bem aplicada!
ResponderEliminarQuando escrevi que era inadequada foi para me referir apenas e só ao facto de que a leitura dos textos do Quito se faz sem hiatos, sem pausas, sem interlúdios.
Porque é um encadeado de situações que nos impele a ler sempre o parágrafo seguinte.
Rui
ResponderEliminarDeste a explicação certa. Neste contexto, a palavra está deslocada para quem lê. Assiste-te toda a razão. Apenas o meu envolvimento naquele "mar de emoções" de uma realidade vivida, me fêz usar um termo, que antecipadamente eu sabia estar deslocado. Mas na minha cabeça, porém, sempre associei algo de músical em tons carregados, à narrativa do pescador e à forma dramática como foi evecuado do barco por um "heli" da Guarda Costeira. Com chuva, vento e mar alteroso, só na terceira tentativa o resgataram. "Devo-lhes a vida" - disse-nos. Numa festa alegre, ao momento dramático de muitos minutos, eu chamei "interlúdio". Para mim toda aquela situação tinha uma música funesta como pano de fundo. Um interlúdio negro.
Abraço
Obrigado Quito.
ResponderEliminarTonito.
Quito, nous ne quittons pas notre insistence pour que tu écris un livre.
ResponderEliminarÓh minha querida São Rosas !!!
ResponderEliminarÉ inutil parler um françês tão avançado comigo.
Ando numas explicações como uma emigrante de Paris, com apenas 2O aninhos, que vive na aldeia Chão da Vã, mas fico de tal maneira desconcentrado, que ainda só vou no presente do indicativo dos verbos être e avoir ...
Abraço
Mas olha que eu cantei em franciú no Dom Sesnando e tu entendeste: "já tarda em escreveres um livro... pá"
ResponderEliminarO Rui Felício está muito calado !!! Deu-me um tiro de bacamarte e foi beber um "fino" à "Portugália" ....
ResponderEliminarDaqui a pouco, por acaso vou. Mas não é beber um fino ( em Lisboa não há finos, só imperiais ). Vou ao Coliseu ver a Bethânea.
ResponderEliminarEntretanto, faço um interlúdio...
Bom espectáculo, Rui. Gosto muito de ouvir Maria Bethânea ...
ResponderEliminarGostei!!!
ResponderEliminarE..."Empurrou a terrina da sopa fumegante na minha direcção e rosnou-me em tom imperativo: … sirva-se…" é uma delícia, como devia estar a canja!!!
Nao te "rosno" Quito!!! Mas...dir-te-ei que é mais uma das tuas excelentes prosas! Parabéns!
Hoje pra variar...e inpiração não é lá muito famosa!? Enfim...!!! dias...
Mais um facto de vida real bem descrito pelo amigo Quito!
ResponderEliminarComo a Praia de Mira foi a minha praia durante muitos anos, revejo-me no que tão bem nos contas.
Claro que gostei deste teu texto, na linha de outros com que nos tens deliciado!
ResponderEliminarJá o referi várias vezes mas repito: assim vou lendo algo diferente do Diário de Coimbra ou do Record, porque para a leitura de livros. não dá nem nunca deu!
Vou por agora lendo estas "estórias" e que mais tarde poderei reler no tal livro que for editado!
Prometo que depois leio o livro...se não demorar muito a sair...
Quanto ao interlúdio a primeira vez que esta palavra me chamou a atenção foi há já muitos anos na RTP!
Quando precisavam preencher espaços entre dois progamas lá vinha um interlúdio musical ou algumas vezes imagens sobre zonas de Portugal Turistico!
O Quito, viajante errante pelas suas memórias, naquele recanto da beira que o embala na solidão do pensamento, soube trazer-nos um episódio da vida real escrito com a sensibilidade de quem sabe estar atento.
ResponderEliminarO Quito pede-nos desculpa por nos remeter para os caminhos da sua saudade e logo nos confronta com uma tela artística, mais uma, carregada de pinceladas de vida, ora de cores cinzentas, ora de multicolor arco-íris.
ResponderEliminarPercebe-se que, para além de querer partilhar connosco pedaços da sua vida vivida, não quer perder a oportunidade de trazer até nós um quadro de gente simples, que ele adora.
E, com toda a sua simplicidade, quase que voltando a pedir desculpa, lá regressa ao seu recanto beirão...
Volta sempre, companheiro.
Aquele abraço.
O material já publicado é suficiente e de qualidade inquestionável, que justificam a publicação numa colectânea de contos.
ResponderEliminarO único trabalho a fazer, que é o mais simples, é a reordenação por temas e a revisão.
Candidato-me a escrever um Prefácio. O que me darias uma enorme honra! Se o Quito aceitar...
Eu contacto o Dr Garcia e a Drª Isabel Garcia da Livraria Minerva, para a metodogia do tabalho a desenvolver até à apresentação da colectânea!
ResponderEliminarQuito começa a trabalhar na selecção dos textos!
Caros Amigos
ResponderEliminarO Rui Felício perdoará, aquilo que eu lhe disse particularmente. Os meus "contos" não são relevantes. Mas os contos do nosso Bairro, são. O Rui Felício, tem contado a todos estórias deliciosas da nossa juventude. O Bairro merece essa homenagem. O Felício, merece ver os seus contos públicados. Eu apenas colaboro, dando a todos um pouco do meu sentir nestas terras do interior profundo. Não me queiram dar uma importãncia que não tenho. Recuso o estatuto que me querem dar. Mas jamais dispensarei a amizade de todos. Obrigado
Quito
Quito, não te desquites, pá!
ResponderEliminarCada coisa é a sua coisa.
Primeira coisa: o Rui Felício um dia destes terá um livro, pelo menos com as suas histórias publicadas n'a funda São, assim ele me autorize e haja uma editora interessada (só tenho é dois textos em carteira... cof... cof... cof... estás a ouvir, Rui Felício? Cof... cof... cof...)
Segunda coisa: Pensavas que escapavas, Quito?! Se eu nunca fizesse algo por achar que alguém faz isso melhor do que eu, não faria nada. Quito, se não for a bem, vai a mal. Se tivermos que fazer uma «edição à revelia do autor» (gosto de coisas originais e esta sê-lo-á), só preciso que a malta do Bairro alinhe.
São Rosas, essa do "se não for a bem, vai a mal" fêz-me lembrar o Raul Solnado quando dizia:
ResponderEliminar" o meu pai, que era um homem liberal e incapaz de impor a sua vontade disse-me um dia: meu filho quer queiras quer não queiras hás-de ir para bombeiro ...voluntário ..."
Tal e qual, Quito. Lembro-me bem de ouvir essa rábula... na Rádio Altitude (da Guarda).
ResponderEliminarParece-me quase tudo esclarecido. O livro do Quito terá prefácio do Rui Felício.
ResponderEliminarO "quase" que está por esclarecer é saber quem faz o prefácio do livro do Rui Felício.
Estão abertas as candidaturas.
O resto está tudo tratado, não é Tonito?
Vai ser giro:
ResponderEliminar«Edição de autor... digo, edição à revelia do autor»