Sinais ...
A aldeia, plantada na encosta do morro, espreguiça-se ao
ritmo lento dos dias sempre iguais. É a torre - sineira que marca o compasso
das horas e da Vida. Pelo seu badalar festivo, anuncia-se um casamento ou
batizado. Pelo toque de fim de tarde, a hora dos fiéis recolherem ao Templo
para a oração do Terço. E, a qualquer hora do dia, sem aviso prévio, por vezes
toca a sinais.
É quando um qualquer habitante do povoado secular, chega ao
fim da caminhada. São badaladas espaçadas, tristes e soturnas. Aqui, neste Lugar
vazio de gente, cada morte tem o ferrete ácido da tragédia. Porque todos se
conhecem desde a infância. A existência sofrida de quem partiu deste mundo, é
sempre um rosário de saudade e de memórias coletivas, materializadas num álbum cinzento
de angústias e de privações.
Hoje, tocou a sinais. Morreu o alfaiate. Dizem que morreu.
Mas o toque do sino não engana. Ele, o alfaiate, há muito que se arrastava pelo
lar de idosos. Conheci-o bem. Simples e cordato, iluminava-lhe a face um
sorriso doce. Por vezes, ainda na plenitude das suas faculdades físicas e
mentais, passeava pela aldeia, tendo como companheira inseparável uma bengala
de madeira. Um dia, sentado num banco de pedra, prometeu contar-me a sua vida.
Do tempo em que, de fita métrica a pender-lhe do pescoço, debruçado sobre a agulha
e o dedal, alinhavava vagarosamente as bandas de um casaco de homem, como quem traçava
a giz, os fios sofridos do Destino.
Naquele Tempo de outrora, a profissão era muito respeitada.
Tanto quanto a figura austera mas conciliadora do Regedor da aldeia. Os fatos,
feitos por medida, faziam a delícia dos fregueses, desejosos de bem trajar,
quando pegavam no andor do Santo, ou assistiam à missa dominical. Ou até, no
fulgor da juventude, namoriscavam junto a uma qualquer fonte a jorrar água
fresca e transparente, de flor viçosa na lapela e colete justo a adelgaçar a
silhueta, para impressionar a moça casadoira, sorridente de esperança e de
felicidade.
Por vezes, não era fácil receber o dinheiro do seu labor.
Tinha que esperar o pago da obra feita. Porém, o alfaiate dormia descansado.
Porque sabia que a palavra dada era como ouro de lei. Não raras vezes, o
produto do seu trabalho era retribuído não em dinheiro, mas em produtos
resgatados à generosidade da courela ou a animal sacrificado do bardo.
Confidenciou-me isso um dia, de chapéu de aba larga a repousar-lhe nos joelhos
e um olhar perdido nas faldas da Serra do Moradal.
Amanhã, por entre estandartes e pendões religiosos esmaltados
de Mártires flagelados, Cristos coroados de espinhos e o
badalar triste de um sino, homens e mulheres de rosto fechado e duro como o
granito, seguirão as exéquias fúnebres a passo, num matraquear de sapatos a
ferir o empedrado da rua, com o cura na dianteira dos fieis, a encomendar o
defunto numa prece monocórdica e impercetível. A penosa procissão, de crucifixo
ao alto na frente do cortejo, desce a viela estreita de onde se divisa a planície
sem fim, com alguns homens de opa vermelha vestida, a drapejar ao sabor da brisa calma de fim de
tarde. Na mão, empunham lanternas de um brilho desmaiado, como quem,
simbolicamente, ilumina o caminho para o Paraíso Eterno.
Depois, tudo é muito
rápido, com os acompanhantes a subir a rua apressados no recomeço do hino da Vida
e da subsistência, que é preciso angariar nos sulcos fofos da terra que é o
sangue dos mais deserdados, ou na carpintaria onde se talha em madeira de pinho,
uma vida digna e laboriosa.
Do Homem, deste Homem, fica a memória. E a lembrança de uma
profissão que também há muito partiu, nesta fúria consumista das sociedades
modernas. Porque em tempos de antanho, coser a bainha de umas calças à luz de
um candeeiro a petróleo, era um monumento singelo de candura. Quase um ato de
amor fraterno, quando a cumplicidade e a amizade entre o alfaiate e o cliente, se
fundiam numa relação de proximidade afetiva e onde, amiudadas vezes, eram estreitos
os laços de parentesco.
Morreu o António Pires. Dizem que morreu. As badaladas lúgubres
do velho sino da igreja não enganam. Que esteja em paz.
Hoje, neste patamar de um outono mascarado e sorridente, sobre
a pequena aldeia beirã, de novo desceu avassalador, o manto negro da tragédia.
Quito Pereira
Ia para comentar mas nem vale a pena. Assisti a tudo o que acabas de escrever.
ResponderEliminarUm abraço.
Pois se hoje em dia e por aqui na cidade, tudo o que acabas de descrever com maestria e que mentalmente nos leva a seguir todos os passos e momentos destes costumes enraizados nos meios rurais, os costumes e modo de vida é diferente embora na hora da despedida da vida terrena, a dor dos que ficam seja também bem sentida.
ResponderEliminarAinda presentemente nos meios rurais toda a aldeia ou vila é desperta para "a noticia triste" através dos sinais sonoros vindos dos sinos que dobram a finados!E eu atá aos 14 anos algumas vezes dobrei o sino a finados em Penela! Como é diferente na cidade!
Para o "finado" é indiferente!
Um texto literário pode ser admirado pela clareza da escrita ou pelo sentimento que dela transparece.
ResponderEliminarOs românticos, de que Alexandre Herculano foi expoente, privilegiaram o culto da fantasia, do sobrenatural, do amor, do sentir com os quais se identificavam.
Os naturalistas, de quem Eça de Queirós foi percursor e farol, enfatizavam a realidade que descreviam, relegando para plano secundário os sentimentos que a ela poderiam estar ligados.
Citei propositadamente dois dos maiores escritores portugueses, antagónicos, contudo, nas linhas orientadoras das respectivas formas de escrever, para demonstrar que o génio literário pode encontrar-se em textos escritos segundo paradigmas opostos.
E apesar deles!
Todavia, o romance, o conto, o teatro ou a poesia, são em minha opinião tanto mais completos, quanto melhor congregarem em si mesmos, as duas vertentes.
Ou seja, o realismo e o sentimento.
É por isso que valorizo e admiro os romances de Almeida Garrett, origináriamente um romântico, que a pouco e pouco conseguiu aliar ao descritivo naturalista e rigoroso do ambiente da acção, os sentimentos das personagens que desenvolvem o enredo.
Porque, como disse Teixeira de Pascoaes, muitos anos mais tarde, um texto literário exclusivamente naturalista é como um relatório empresarial muito bem formulado, mas que, isento de sentimentos, se torna uma peça irrepreensivel do ponto de vista formal mas inócua na sua relação com os sentimentos do leitor.
E que, inversamente, um romance que se queda pelos sentimentos, sem os interligar com a realidade quotidiana, não é mais que um repositário de fantasias ou de falsidades.
É por isso que digo agora aquilo que já aqui tenho repetido relativamente à forma como o Quito Pereira escreve.
Que comparo a Almeida Garrett...
A descrição precisa, pormenorizada, da aldeia beirã onde tudo decorre, do perfil humano do alfaiate e das tradições ancestrais dos seus conterrâneos, encadeia-se perfeitamente com a mensagem do efémero da vida e do seu inexorável passamento, que é afinal o "leimotiv" deste extraordinário conto.
Contos da vida real como o Quito traz até nós e comentários como este do Rui Felício além dos seus textos, são riquezas que não se podem perder.
Eliminar"o manto negro da tragédia" mas também o manto branco da partilha.
ResponderEliminarBem hajas, Quito.
" Dizem que morreu"...
ResponderEliminarSim, hoje o alfaiate morreu, com o coração sem mais bater.
Meu tio Furtado, alfaiate na Praça 8 de Maio era, no seu tempo, muito considerado na sua arte
Lembro-me de ver as togas, os fatos para os catedráticos, as fazendas da fábrica de lanifícios Santa Clara, que o meu pai desenrolava e trazia até à porta para o cliente ver melhor o padrão e a cor.
As recordações que o Quito me fez trazer à memória com " Os sinais" oferecidos em dia de Todos os Santos.
Impossível ler este texto sem me lembrar do Sr. Cardoso uma excelente pessoa e não menos excelente alfaiate que passava um martírio comigo, para me fazer os fatos como eu os queria e não como se usavam.
ResponderEliminarUm belo texto, como sempre!
Gosto.
ResponderEliminarFizestes com que eu momentaneamente regressa-se á minha juventude na aldeia. Estupendo.
ResponderEliminarFernando AZENHA
"Morreu o António Pires. Dizem que morreu."
ResponderEliminarNão morreu porque o Quito o perpetuou.
Mais um homem simples que o Quito não deixa desaparecer.