Desde sempre, ela tinha duvidado do tão propalado amor à primeira vista, mas agora estava certa que esse “coup de foudre” que incendiava repentinamente os sentidos, não era afinal uma figura de retórica.
Foi por isso que foi à loja da Rua Ferreira Borges onde há tempos tinha visto entrar aquele rapaz bem parecido, atraente, elegante, e perguntou se sabiam onde morava e o que fazia.
Disseram-lhe que era do Calhabé e que andava a estudar. Encheu-se então de coragem, esqueceu a sua congénita timidez, e resolveu ir até ao Café Aquário que ele frequentava, para esvaziar de uma vez, de dentro do seu peito, esse segredo dolorosamente guardado há mais de um mês.
Com ar melancólico, sentada na sala a abarrotar de gente, começou a confessar-lhe baixinho, em voz sussurrada quase sem mexer os lábios, que o amava loucamente, desde que há um mês o vira na Baixa. Pedia-lhe apenas que lhe desse a oportunidade de se conhecerem, de trocarem impressões...
Desde esse dia, não pensava em mais ninguém senão nele, quase não comia, acordava de noite a imaginar que o tinha ao seu lado, continuava ela a dizer-lhe, numa voz baixa, quase imperceptível, para não ser ouvida pelas restantes pessoas que estavam no Café.
Concentrado na leitura do Diário de Coimbra, de onde por vezes levantava os olhos, com ar alheado, parecia que ele, estranhamente, ainda nem tinha dado pela presença daquela bonita rapariga sentada na mesa ao lado.
Nisto, entra no Aquário o Feliciano, apressado, de rompante. Pediu uma bica ao balcão, e, reparando na presença do colega a ler o jornal, elevou a voz e berrou-lhe com o seu potente vozeirão:
- Estás bom Pedro? Não vais às aulas hoje?
Como não tivesse resposta, nem sequer um ligeiro aceno, deu a volta, postou-se mesmo à sua frente e repetiu a pergunta gritando ainda mais alto, perante o ar atónito e espantado da rapariga que não percebia a razão de tanta berraria.
- Você chama-se Pedro?, perguntou ela no mesmo registo de voz sussurrado com que antes lhe tinha estado a confidenciar a sua paixão.
O Feliciano, virou-se para ela e disse-lhe. Chama-se Pedro, sim, mas se quer que ele lhe responda tem de lhe gritar. É surdo que nem uma porta!
E tem a mania de só colocar o aparelho quando está nas aulas, concluiu...
Esta é uma narrativa que está vocacionada ao sucesso. Não só pela pincelada jocosa, em contra-ponto com o seu "quê" de dramático, como também pelo palco onde se desenrola. De facto, ao apresentar a Rua Ferreira Borges, como o iníco deste desencontro amoroso, redobra a expectativa. A seguir, lá vem o Calhabé e o Café Aquário de tantas memórias! A todos estes ingredientes, o autor - o Rui Felício - juntou uma pitada de "Diário de Coimbra". Quero acreditar que esta história teve um final feliz, no dia em que um simples aparelho auditivo, estava sintonizado com o coração de uma dama, perdida nas labaredas de um amor tórrido. Tenho a certeza que o romance chegou a bom porto. Para histórias negras, já bastam as que por vezes chegam lá dos lados da Beira Baixa.
ResponderEliminarAbraço Rui
Amigo Quito,
ResponderEliminarAo dizeres "lá dos lados da Beira Baixa", sou levado a pensar que ainda andas por Coimbra.
Se assim é, aproveita a nossa cidade...
Dois esclarecimentos:
1. - O tal estudante não era o Rafael.
2. - O final foi feliz, como dizes. Casaram anos depois e viveram ao fundo da Rua dos Combatentes.
Caro Rui
ResponderEliminarClaro que vou aproveitando a minha e nossa cidade.
No meu meu comentário, não estava subjacente o Senhor Administrador, o nosso querido amigo Fernando Rafael, até porque ele só lê o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Penela".
Fizeste bem em arrumar o casalinho ao fundo da Rua dos Combatentes, num T 1 bem aconchegado. A cumplicidade entre os dois amantes, fica agora ao critério de cada um. A menos que o teu espírito inquieto ainda tire mais algum coelho da cartola ...
No seu estilo, o Rui Felício traz até nós o que até pode acontecer em muitos lados pois há muitos Pedros, só que raramente tão novos.
ResponderEliminarNos dias que vão correndo, até é um bom sistema e muito prático. Barulhos e músicas altas aonde quer que se vá, não faltam. O problema é que se comprar um aparelho, por enquanto ainda não me serve para nada. Vou esperar mais algum tempo. Talvez uma "rolha".
Boa,Rui.
ResponderEliminarUm amor de sono-funil!
Um abraço.
Cá para mim, o Pedro não seria só surdo...
ResponderEliminarUm sussurro quentinho, nem precisa de orelha, quanto mais de ouvido!
Pois Rui Felício cá o Castelão nesses tempos ouvia a Kilómetros de distância!!!
ResponderEliminarSerá que nessa época já havia "sonotones?"
Não seria um funil que ele usava nas aulas?
Mas a estória(verdadeira, não tenho dúvidas), pois ficticios só serão os nomes do Pedro e Feliciano!
O Feliciano, sem o pretender ser, foi um bom casamenteiro.
ResponderEliminarNão fosse ele e o sussurro da jovem apaixonada teria esbarrado, para todo o sempre, naquilo que ela consideraria uma inexplicável indiferença do surdo Pedro.
Mais um bom "linguado" do Rui Felício que, para além da estória, nos repõe na memória o carismático Café Aquário. Quanta saudade!
Aquele abraço.
A sensibilidade feminina nestes casos é sem falhas! E a nossa Celeste, ao evocar esse sussurro quentinho, que traduzimos hoje por "miminho", topou logo onde se situava o grande dilema.
ResponderEliminarCafé Aquario! Também frequentei. Se nao me engano, ia là jogar bilhar de vez em quando.
Mas se o Rui frequentou assiduamente esse local deve concerteza ter conhecido uma das mais lindas senhoras do nosso Bairro e, minha vizinha na Rua da Guiné. Figura emblemàtica da contestaçao politica, a Dona Yvonne possuia uma excelente cultura. Chegou mesmo a participar num filme Português. Viveu muitos anos ao lado do Dr.Archer. Alguém a conheceu? Talvez a Olinda!
Gostei imenso da narrativa. Fiel ao estilo bem proprio do Rui!
Pois este Pedro para além de surdo até parecia cego para ignorar de forma tão ostensiva a rapariga.
ResponderEliminarCasaram? Foram felizes? Se foram ainda bem.
Sem dúvida que este Pedro seria surdo, cego e mudo! não ouviu, não viu, nem disse palavra !
ResponderEliminarObrigada Rui Felício pelas belas narrativas que nos dedicas, sempre num contexto imaginário, onde cada um procura a verdade à sua maneira.
Um abraço.