(foto net)
Maria Mendonça, fechou devagar a porta do seu humilde casebre. Por precaução, deu duas voltas ao ferrolho. Lá dentro, ficava sozinho o seu pequeno rebento de quatro anos. No coração apertado levava a sua angústia de mãe. Mas não tinha alternativa. A necessidade de regar a horta - a subsistência da família - impelia-a para o que não desejava fazer: deixar o filho entregue a si próprio e à bondade do Destino.
Tomara as suas previdências. Prometera-lhe que, na volta, traria no caldeiro figos e ameixas saragoçanas. Depois, para lhe adoçar a boca, deixou-o a chuchar miolo de pão centeio humedecido com açúcar.
E assim, durante algum tempo, o menino se entreteve. A fome fê-lo, por momentos, esquecer a ausência da mãe. Logo que o miolo de pão acabou e se viu na escuridão do pobre lar, desatou num berreiro angustiado, até que adormeceu lavado em lágrimas.
O pai, esse, era um homem bom, honesto e trabalhador. Vivia do trabalho sazonal, e nem sempre podia trazer para casa o dinheiro para o sustento. Mesmo assim, com sacrifício e porque amava os filhos, quando ia a Castelo Branco, trazia um pão de trigo, guloseima de casa de ricos, vulgarmente chamado “chapada”, que todos comiam sofregamente.
E o menino, um dia, fez-se rapaz. Partiu para a escola de sacola ao ombro. E nela, o lápis, a borracha, o caderno, a “pedra” de lousa e um ponteiro.
No inverno, quando a “ruça” branqueava os campos e os telhados, e o vento gélido fustigava as faces, o menino que se fez rapaz lá seguia para a escola com os outros companheiros, desprotegidos de agasalhos, de pés descalços e com frieiras. Poucos, muito poucos, tinham dinheiro para andar calçados.
A necessidade de angariar algum dinheiro, levava-o por vezes a guardar gado na Quinta do Búzio, dormindo com ele muitas vezes no bardo, bebendo o leite que esguichava do amojo e olhando o manto de um céu estrelado.
Para muitas famílias, a infelicidade parece que atrai infelicidade. E um dia, sem que nada o fizesse prever, a sonave da casa – o pai – faleceu repentinamente, deixando em situação ainda mais aflitiva, aquela pobre família. Aconteceu na véspera do dia de S. Simão, a festa da aldeia. E a Banda de Tinalhas, convidada para alegrar as ruas da pacata povoação, acompanhou o singelo caixão até à última morada, tocando, a espaços, a marcha fúnebre de Chopin.
Maria Mendonça, passada a fase de luto carregado, enfrentou o destino. Trabalhava no campo a par dos homens, com o mesmo vigor e empenho, mas ganhando apenas metade do salário. Foi corajosa e obstinada. Com o suor do rosto e a força dos braços, deu grande exemplo de dignidade, dando aos filhos tudo o que modestamente lhes podia dar, amenizando privações, numa atitude de amor e total abnegação.
E o rapaz, fez-se homem. E um dia partiu para a capital e por lá construiu uma vida, como capitão do exército.
Sete décadas se passaram, sobre estes acontecimentos. De Maria Mendonça e José Prata resta a lembrança. O rapaz, que um dia se fez homem, cumprindo um destino cruel, também já partiu. Resta, hoje, o pequeno casebre de Juncal do Campo, como monumento a recordar a fome, a miséria e a solidão. O ferrolho da velha porta, há muito que enferrujou. Já só restam os ventos da memória …
Q.P. (2008)
Tomara as suas previdências. Prometera-lhe que, na volta, traria no caldeiro figos e ameixas saragoçanas. Depois, para lhe adoçar a boca, deixou-o a chuchar miolo de pão centeio humedecido com açúcar.
E assim, durante algum tempo, o menino se entreteve. A fome fê-lo, por momentos, esquecer a ausência da mãe. Logo que o miolo de pão acabou e se viu na escuridão do pobre lar, desatou num berreiro angustiado, até que adormeceu lavado em lágrimas.
O pai, esse, era um homem bom, honesto e trabalhador. Vivia do trabalho sazonal, e nem sempre podia trazer para casa o dinheiro para o sustento. Mesmo assim, com sacrifício e porque amava os filhos, quando ia a Castelo Branco, trazia um pão de trigo, guloseima de casa de ricos, vulgarmente chamado “chapada”, que todos comiam sofregamente.
E o menino, um dia, fez-se rapaz. Partiu para a escola de sacola ao ombro. E nela, o lápis, a borracha, o caderno, a “pedra” de lousa e um ponteiro.
No inverno, quando a “ruça” branqueava os campos e os telhados, e o vento gélido fustigava as faces, o menino que se fez rapaz lá seguia para a escola com os outros companheiros, desprotegidos de agasalhos, de pés descalços e com frieiras. Poucos, muito poucos, tinham dinheiro para andar calçados.
A necessidade de angariar algum dinheiro, levava-o por vezes a guardar gado na Quinta do Búzio, dormindo com ele muitas vezes no bardo, bebendo o leite que esguichava do amojo e olhando o manto de um céu estrelado.
Para muitas famílias, a infelicidade parece que atrai infelicidade. E um dia, sem que nada o fizesse prever, a sonave da casa – o pai – faleceu repentinamente, deixando em situação ainda mais aflitiva, aquela pobre família. Aconteceu na véspera do dia de S. Simão, a festa da aldeia. E a Banda de Tinalhas, convidada para alegrar as ruas da pacata povoação, acompanhou o singelo caixão até à última morada, tocando, a espaços, a marcha fúnebre de Chopin.
Maria Mendonça, passada a fase de luto carregado, enfrentou o destino. Trabalhava no campo a par dos homens, com o mesmo vigor e empenho, mas ganhando apenas metade do salário. Foi corajosa e obstinada. Com o suor do rosto e a força dos braços, deu grande exemplo de dignidade, dando aos filhos tudo o que modestamente lhes podia dar, amenizando privações, numa atitude de amor e total abnegação.
E o rapaz, fez-se homem. E um dia partiu para a capital e por lá construiu uma vida, como capitão do exército.
Sete décadas se passaram, sobre estes acontecimentos. De Maria Mendonça e José Prata resta a lembrança. O rapaz, que um dia se fez homem, cumprindo um destino cruel, também já partiu. Resta, hoje, o pequeno casebre de Juncal do Campo, como monumento a recordar a fome, a miséria e a solidão. O ferrolho da velha porta, há muito que enferrujou. Já só restam os ventos da memória …
Q.P. (2008)
Belíssimo, sem dúvida, mais este texto que me traz à memória a vida doutrora na minha terra e que eu tive a sorte de apenas a conhecer, nos outros.
ResponderEliminarObrigado Quito
Abraço
A nossa geração ( agora que tanto se fala da geração à rasca ), teve uma infância e adolescência sem luxos, difícil, foi educada e habituada ao trabalho, à responsabilidade, à poupança.
ResponderEliminarMas não soube o que era fome, ou o que era enganá-la com um naco de pão embebido em açucar, não se ia para a escola sem sapatos, ebora os que usavamos fossem de sola de pneu para resistirem mais tempo.
Estou a falar dos jovens do Bairro que, sendo pobres, tinham o minimo indispensável.
Mal sonhávamos que por essas aldeias perdidas do interior, havia outros miúdos como este...
Cujos pais, para além das agruras da vida deviam trazer o coração apertado de dor, por não poderem dar aos filhos aquilo que qualquer pai ou mãe lhes deseja.
Comovente história, com um ritmo que nos prende a atenção e nos obriga a ler o parágrafo seguinte. Até ao fim...
Terminando com uma imagem que se repete pelas nossas aldeias fora.
Casas abandonadas, com os ferrolhos calcinados e os gonzos ferrugentos.
História bem realista e contada com a tua afectividade à flor da pele...
ResponderEliminarDurante a minha vida profissional o meu contacto com estas realidades foram muito frequentes e quanto dói!
Também vivi de perto muitas vidas assim, desde os tempos em que os meus Pais, professores primários, me levavam numa alcofa para a escola.
ResponderEliminarAprendi a admirar pessoas para quem, como a Maria Mendonça, cada dia passado merecia um monumento à coragem.
Excelente texto, Quito. Continuo a achar que devias enviar os teus trabalhos para o Jornal do Fundão. Tenho a certeza que eles (tal como nós) iriam adorar.
Um belíssimo texto duma realidade não muito distante mas que a geração com menos de 35 anos nem imagina que alguma vez isto tenha acontecido!
ResponderEliminarBravo!
ResponderEliminarAplaudo de pé! Brilhante texto!
E o Alfredo tem razão! A dita "geração à rasca" não imagina a vida de milhares de "Marias Mendonças"...que com suor e lágrimas e muita coragem e dignidade lutavam para ter sempre uma malga de sopa para os filhos!!!
É um excelente têxto e no qual se nota bem o estilo do Quito, na forma de escrever e nele vincar bem o que lhe vai na alma por situações dramáticas vividas por todas estas "Marias Mendonças"
ResponderEliminarNão sei em que época se passa esta situação.
Eu nasci e cresci num meio rural práticamente a viver em exclusividade da agricultura familiar!
mesmo os que eram funcionários da Função Pública, Câmara, Finanças, GNR, Notários, ou até mesmo na actividade comercial, também se dedicavam ao cultivo das terras!
Quando andava na escola não me lembro de alguns dos meus colegas virem descalços para a escola, e os que moravam longe traziam uma lancheira, claro que não muito recheada, admito insuficiente para uma alimentação que fosse razoável.
Portanto naquele tempo - na minha terra Penela-
pelo menos fome não se passava, pois não havia ninguém que não tivesse pelo menos os produtos da terra que os próprios cultivavam!
É evidente que comer carne ou peixe não era normal para a maioria dos habitantes desta zona rural!
Mas sempre havia uma galinha, um coelho, um porco e que sempre que se justificasse também entravam na alimentação!
E as cabras, as ovelhas que davam leite para dar ás crianças e para fazer queijo (para consumo próprio e até para vender!)
Isto passava-se no meu concelho nos anos 40,50,60 (depois deixei Penela e vim para Coimbra)
Mas nem todas as zonas rurais por ventura teriam as mesmas condições suficientes para uma vida minimamente digna!
É uma evidência que a grande maioria das populações hoje vive melhor: com mais conforto, com acesso a melhor educação, a melhor saúde, etc, etc!
Mas notam-se muitas mais situações de pobreza extrema!
E por aqui me fico!
Belo texto,Quito.
ResponderEliminarNão gosto do passado(nunca passei fome,nem andei descalço) e custa-me sempre fazer a comparação com o presente.
A grande diferença de gerações.a meu ver,nem é tanto a das comodidades e das facilidades.
Estará mais nos valores e nos hábitos.
O trabalho(físico,intelectual,artesanal,etc.) era um valor sempre presente.
A educação era adquirida em casa,na família.
Os tempos não eram de fartura,mas tínhamos as batatas,as couves,o feijão,o azeite,o porco,as galinhas,as cabras,etc.
Íamos à escola para aprender,não para sermos educados.
E já vai longo o comentário.
Um abraço.
Foi bom poder reler a história desta mulher de fibra que não soube virar a cara à luta e à adversidade.
ResponderEliminarAquela geração e o espaço e o tempo em que se desenrola esta história, não se compara com o outro tempo, dos tempos de hoje, em que outras Marias Mendonças lutam também sem emprego e dinheiro e sem saberem como alimentar os seus filhos.
Tudo mudou, mas as bolsas de miséria estão aumentando, infelizmente, e é nas cidades onde se faz notar, hoje, a miséria de quem nada tem.
Obrigado Quito, por publicares este retrato vivo desta mulher sofrida desta forma que tão bem sabes.
Abílio
Hoje, o meu dia dividiu-se em duas fases muito diferentes.
ResponderEliminarAlmocei com uma dezena de amigos, cavaqueamos, até jogamos uma "suecada".
Pelas 16 horas largamos o convívio e cada um correu para o seu cantinho, todos desejosos de saber o que é que se passava na AR.
Não fui excepção, agarrei-me à TV e absorvi com verdadeira ansiedade, não com surpresa, os acontecimentos do dia.
Arrastei o meu masoquismo até esta hora. Ouvindo comentários e debates, discursos de políticos e de polítologos.
Há uns momentos a Olga, percebendo o meu baixo astral, perguntou-me se já tinha visto o texto do Quito. "Está uma maravilha, vai ver que vais gostar", foi assim que se despediu de mim antes de se enfiar nos braços de Morfeu.
Em boa hora segui o seu conselho e vim ao blog.
Uma maravilha! Gostei! - a Olga tinha razão.
E, graças a ti, vou enfiar a cabeça no travesseiro menos mal disposto do que seria previsível há meia hora atrás.
Obrigado.
Grande abraço.
Só depois de fazer o meu comentário, li os comentários dos nossos amigos.
ResponderEliminarFico contente ao verificar que todos demonstram as mesmas preocupações sociais.
Para todos o meu abraço.
Dom Rafael, não me leves a mal mas hoje vou mesmo despegar mais cedo.
Sinto-me cansado, vá-se lá saber porquê.
Amanhã será outro dia.
Sou murcom mas sou teimoso...
Bela crónica.
ResponderEliminarQuanto às reflexões que ela suscita, ficaram bem expressas nos comentários lúcidos dos meus amigos.
Só hoje li este texto, ao levantar, ainda mal refeito de um fim de tarde e uma noite em que senti a desagradável sensação de que , depois de ter ouvido tantos políticos e tantos analistas, faltou ao país, ontem, ouvir a Maria Mendonça!
Partilho das preocupações de todos. Ontem, neste acanhado escritório, numa pequena TV, assisti ao debate. E à noite, já em casa, fui ouvindo todo o tipo de comentários. Agradeço as vossas opiniões. O Rui Pato, fechou com chave de ouro: Faltou ouvir a Maria Mendonça.
ResponderEliminarUm abraço a todos
Nos anos 60, primeiros anos de profissão, quantas meninas e meninos calcorreavam a pé, 6 km para irem à escola!
ResponderEliminarDescalços, mal agasalhados, com um ovo cozido para dividir por dois irmãos, um naco de broa para acompanhar, algumas vezes já bolorenta...
A venda, tinha pão fresco e marmelada para amenizar a fome que "alguém" pagava,´"alguém" que bem pouco recebia e muito trabalhava!
Tempos idos e nada fáceis.
Já tinha lido o teu texto, embora não o tivesse comentado, porque estava sem disposição, por tanto que ouvi na televisão ( fiz rima sem querer !)
ResponderEliminaracreditem que sinto um medo enorme de que muitas Marias Mendonça possam surgir de novo, às catadupas! mais, muito mais do que já existem sem nos apercebermos...
Mas amigo Quito, entrei aqui para te dizer que gostei especialmente deste texto, e que cada vez nos surpreendes mais, pela qualidade com que os escreves.
Um abraço.