...tenho que ser justo. Esta consegue ser mais feia que a Amélia do Amparo ...
Apareceu-nos no Gabú, vindo das altas terras da Guarda. Trazia nos ombros as divisas de furriel, e cedo deu nas vistas pela sua gabarolice. Cabelo quase rapado, usava camisa justa de manga curta, de onde sobressaíam dois braços peludos, que mais pareciam dois troncos. Quer nas tertúlias do bar, ou nas noites escuras da tabanca, a conversa do Almeida era sempre a mesma: a sua apetência por saias. Gabava-se, de na Guarda ser um galã, e que nos bailes da região, destroçava corações. Um dia, numa passagem por Bissau, enquanto bebia uma “imperial” no café do Bento, reparei numa fotografia caída no chão. Apanhei-a. Era o jovem rosto de uma mulher. Olhei-a com curiosidade, e logo me apercebi de uma verdade que não merecia contraditório: a miúda era feia como a noite dos trovões !!!. Tinha um rosto comprido e um queixo de rabeca, um nariz adunco, e era ligeiramente estrábica. Meti então a fotografia na carteira, enquanto na minha mente se começou a formar uma ideia maquiavélica. Chegado ao teatro de guerra, e num recanto escuro do Bar, convoquei o alferes Beirão e o furriel Mimoso para uma conversa. E foi ali, sentados a uma mesa, que esboçámos a conspiração. O Beirão era da Guarda, e estava a poucos dias de ir de férias a Portugal. E a ideia peregrina era esta: o alferes levar a fotografia da rapariga, e remetê-la depois numa carta arrebatadora e apaixonada, endereçada ao Almeida. Analisámos a “canalhice” ao pormenor. A letra tinha que ser feita por mão feminina, e era preciso um remetente. Enquanto o Mimoso franzia a sobrancelha de tanto pensar, o Beirão resolveu de imediato o problema. Estou a vê-lo, alto e careca, pálido como uma vela de estearina e uma voz grasnada, a dizer: “ … a carta escreve a minha irmã … e o remetente pode ser mesmo o lá de casa …”. Com afinco e reboliço, debruçamo-nos então a escrever o teor da missiva, comigo à cabeça do pelotão. A Amélia do Amparo - assim baptizámos a miúda – dizia-se “vítima” de uma paixão arrebatadora pelo Almeida, e que tinha “revolvido o mundo” para saber do paradeiro do seu amado. Bem, a carta ficou um Mimoso mimo. Agora, já só faltava a irmã do Beirão copiá-la. Dias mais tarde, o alferes partiu de férias, levando no bolso um rascunho redigido por três trafulhas. E a fotografia. Depois, foi só aguardar, pacientemente, que a carta da “doce Amélia” chegasse. Como chegou. Após a correria na procura do nosso correio, eu e Mimoso encostámo-nos a um frondoso embondeiro, no meio da parada. E pelo sorriso triunfante do Almeida, percebemos que o Beirão tinha cumprido, na íntegra, a espinhosa missão. Regressámos então ao abrigo, enquanto o Almeida, sentado num tronco de árvore, devorava a arrebatada mensagem, com os olhos fora das órbitas. Minutos depois entrou na nossa toca, triunfante, a acenar com a fotografia na mão, e a dizer fora de si: “ … eu sabia… eu tinha a certeza … que ela estava louca por mim …óh malta… você nem imaginam o “marmelanço” que foi num baile de anos de uma amiga minha … ela toda derretidinha … vou já escrever-lhe !!!...”. E escreveu. Só que nunca houve retorno das inflamadas cartas do Almeida, como era óbvio. O destino era o caixote do lixo, em casa do Beirão. Mas o nosso “pinga-amor”, nunca deu o braço a torcer. Quando chegava a avioneta do Correio, percebíamos na cara dele o seu desencanto e o ar crispado…
O ano passado, lá para os lados de Fátima, os militares que durante várias décadas passaram pelos trilhos do Burmeleu e do Chéche, resolveram encontrar-se num almoço. Tinham decorrido quase quarenta longos anos. No repasto, apenas reconheci dois ou três militares daquele tempo e do meu tempo. E o Almeida. Ficou à minha frente, na mesa. Com um sorriso seráfico, fui perguntando se ele tinha casado com a “doce Amélia”. Disse-me que não, mas que quando regressou de vez a Portugal, ainda tinha andado “enrolado” com ela. Tanto tempo decorrido após o regresso da guerra, o Almeida continua com a mesma prosápia. Este ano, haverá, certamente, novo convívio. Espero não ficar na mesa dele. É que já não tenho paciência - não tenho mesmo - para o recomeçar da verborreia …
Q.P.
O ano passado, lá para os lados de Fátima, os militares que durante várias décadas passaram pelos trilhos do Burmeleu e do Chéche, resolveram encontrar-se num almoço. Tinham decorrido quase quarenta longos anos. No repasto, apenas reconheci dois ou três militares daquele tempo e do meu tempo. E o Almeida. Ficou à minha frente, na mesa. Com um sorriso seráfico, fui perguntando se ele tinha casado com a “doce Amélia”. Disse-me que não, mas que quando regressou de vez a Portugal, ainda tinha andado “enrolado” com ela. Tanto tempo decorrido após o regresso da guerra, o Almeida continua com a mesma prosápia. Este ano, haverá, certamente, novo convívio. Espero não ficar na mesa dele. É que já não tenho paciência - não tenho mesmo - para o recomeçar da verborreia …
Q.P.
Mas que "estória" mais sensacional!!!!!!!
ResponderEliminarMalandros da Tabanca!!!!!
Mas que a menina é mesmo DOCE ninguém tem dúvida!
Havia um provérbio, antigo que dizia " Casem-se as bonitas que as Feias já estão"!!!!
Mas o vosso Almeida chegou para vós!
As sacanices da juventude!... Aparecia sempre um Almeida que se prestava a estas malandragens!
ResponderEliminarNunca pensei que tu fosses tão malvado, ó Quito!...
A história, como sempre, muito bem contada!
Ainda bem que não fiz a tropa contigo, Quito! Chiça!
ResponderEliminar(já agora, aproveito a boleia para te perguntar se recebeste um e-mail que já te enviei na semana passada, sobre a impressão em tela da foto do Tonito, para a São. É que já reenviei há 2 ou 3 dias e tu, pareces a Amélia do Amparo...)
Nem a feiona de queixo de rabeca esmoreceu o entusiasmo do Almeida...
ResponderEliminarBem diz aquele ditado "em tempo de guerra não se limpam armas" e como "o que vem à rede é peixe" o Almeida nem se fez rogado.
Boa partida Quito. Não te pensava capaz de tal brincadeira, mas o tempo na tropa tinha que se passar e tudo servia.
Um abraço
A Imagem desta Amélia Doce não me larga:
ResponderEliminarAinda esta manhã...no chuveiro me dei a cantarolar esta camção do Carlos Mendes...
Amélia dos olhos doces,
Quem é que te trouxe grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca,
Na pele e na roupa, perfumes de França
[refrão]
Cabelos cor-de-viúva,
Cabelos de chuva, sapatos de tiras,
E pois, quantas vezes,
Não queres e não amas
Os homens que dormem,
Os homens que dormem contigo na cama
Amélia dos olhos doces,
Quem dera que fosses apenas mulher
Amélia dos olhos doces,
Se ao menos tivesses direito a viver
[refrão]
Amélia gaivota, amante, poeta,
Rosa de café
Amélia gaiata, do bairro da lata,
Do Cais do Sodré
Tens um nome de navio,
Teu corpo é um rio onde a sede corre
Olhos doces, quem diria,
Que o amor nascia onde Amélia morre
O vício de escrever fomenta a imaginação. O Quito, para satisfazer o seu vício, que já vem de longe, não deixa escapar nenhuma oportunidade.
ResponderEliminarE este Almeida veio-lhe mesmo a calhar...
Adorava ter lido a tal carta. Mais ainda, adorava ter visto o Almeida a lê-la.
É que, naquele ambiente da Guiné, uma Doce Amélia, por feia que fosse, seria sempre uma imaginosa beldade que preencheria as noites solitárias e quentes do Almeida...
Ó Quito
ResponderEliminarAo ligar o computador e clicando para o blog Chiça que apanhei um susto com aquela linda imagem de uma tal Amélia.Bem em Vila Cabral tambem fizemos umas brincadeiras dessas Quito.Obrg pelas tuas estórias
Bom Carnaval.
Pensarão que a minha descrição da "Amélia" é pura fantasia. Mas não é. A rapariga não tem culpa, mas realmente era feia como as trazeiras dum susto !!!
ResponderEliminarMal sabe ela, se ainda for viva e faço votos para que assim seja, que a sua fotografia andou a passear entre Portugal e a Guiné.
Como diz o Alfredo, uma sacanice.Uma sacanice a três: eu, o Beirão e o Mimoso. Verdes anos !
O gajo mereceu pela fanfarronice. Mas continua na mesma ...
Destes trafulhas eu gosto...a sua trafulhice tinha em conta "dar uma lição" ao fanfarrão Almeida!
ResponderEliminarMas a doce Amélia"representava" a carência afectiva de que também sofriam os nossos trafulhas...
Quito,a tua imaginação não está em crise,felizmente...Valha-nos isso!
Quito
ResponderEliminarO susto que está na fotografia ia fazendo com que nem lesse o artigo. Só a pensar que iria perder momentos de leitura agradável, fez com que mudasse de ideia. Pois, a tropa era composta de rapaziada nova e como tal também quase todos tivemos momentos bem passados como na vida real. Se bem que essa brincadeira tenha sido um pouco dura, ele também não mudou com o andar do anos. São os momentos próprios da irreverência da juventude, brincadeiras do momento próprias de uma amizada que a todos nos unia, que ainda hoje adoro lembrar. Bem hajas por este bocadinho.
Li ontem, reli hoje.
ResponderEliminarSou guloso, na gastronomia como na leitura. Mas a minha gula leva-me a tentar saborear, o mais pausadamente possível, os petiscos que mais aprecio.
E gostei muito deste, que me fez remontar aos meus tempos de "tropa".
Na nossa juventude, não nesta e sim na verdadeira, todos teremos conhecido alguns "Almeidas". Gabarolas e fanfarrões, artistas e outros aldrabões...
Conheci um que, apesar de ser um bom amigo, tinha muito dessas características reprováveis.
Mulher, ou melhor, "miúda", que se lhe atravessasse no olhar era conquista assegurada.
Eu tive, portanto, o meu "Almeida".
Na "minha tropa", na Base de Monte Real, onde aterrou o Almeida, eu e muitos outros, também aterrou um especialista em imitações. Imitava, com a mesma facilidade, Salazar e Caetano, Amália e Artur Agostinho.
Para ele, imitar uma voz feminina era uma brincadeira de criança.
Não sei, nunca soube, como se chamava. Era conhecido pelo "Papagaio", exactamente por esta sua facilidade em imitar vozes alheias.
O Almeida, numa sexta-feira primaveril, disse-me a mim e a outros amigos mais chegados, que ficaria na Base, que não iria de fim-de-semana. "Tenho aqui um "engate" que não quero perder"...
Segunda-feira, manhã cedo, o Papagaio segredou-nos que tinha sido ele a convidar o pobre do Almeida para um encontro, no sábado, ao fim da tarde em Leiria. "Na Confeitaria Central", com uma morena vestida de verde que por ele estava apaixonada.
Claro que nem morena nem loura, nem de verde ou de vermelho vestida...
Durante toda a manhã, fomos observando, avaliando, os estragos que aquela malvadez teria trazido ao nosso amigo Almeida. Qual quê?! Não se dava por perdido nem achado.
Finalmente, durante o almoço, atrevi-me a perguntar-lhe se tinha valido a pena ter ficado, no fim de semana, na Base.
Que sim! Claro que sim!
Tinha sido espectacular o encontro com a "miúda", perdendo-se mesmo na narrativa de pormenores que nem me atrevo a contar-vos...
O meu obrigado ao Quito por me fazer lembrar estas "coisitas".
E não publicas isso em post, Viana?! É pena ficar só por aqui...
ResponderEliminarÀ sombra e a pretexto da história contada pelo Quito, o Carlos Viana trouxe-nos aqui um delicioso episódio passado igualmente no seu tempo de tropa.
ResponderEliminarContado como só ele sabe, de uma maneira que nos prende, com uma clareza de esrita que desde há muito admiro e que lamento se cinja à penumbra do "back office", sob a forma de comentário.
Olha que dois!!!
ResponderEliminarA outra vertente da injusta guerra, matizada de humor e irreverência.
Boa Quito, mais um texto de agradável leitura.