O Padre Anibal gostava de aterrorizar os meninos da catequese pintando o Inferno de cores horrendas, onde ardia o fogo eterno que chamuscava as almas pecadoras e calcinava tudo à sua volta. Ensinava-nos que era para aquele antro medonho que iríamos passar a eternidade, se praticássemos o Mal, se pecássemos...
Como contraponto, desenhava-nos o Céu em cores suaves, onde cresciam flores de inimagináveis perfumes, com regatos de cristalinas águas a correrem, numa melodia inebriante, de paz infinita...Esse era o Eden, o lugar perfeito, para onde iam as almas boas. A que só teríamos acesso se fossemos bons meninos, se fizéssemos só o Bem, se não fossemos pecadores...Lamentava-me por não conseguir apreender a noção de Bem e de Mal. Achava que o que era Mal para mim podia ser Bem para outro. E vice-versa. Parecia-me que tudo era uma questão de consciência...
E, sendo assim, que certeza poderia eu ter de, no Juízo Final, poder ser condenado a ir para o inferno, mesmo que, em minha consciência, eu achasse que só tinha praticado o Bem? Estava nas mãos do critério do Criador, com o qual o meu podia não coincidir. Podendo ser castigado pelo Mal que honestamente considerava que era o Bem.
E não valia a pena pedir ao Padre Anibal que me definisse com exactidão o que era o Bem e o que era o Mal, porque ele, do alto do seu pedestal não o faria...
Até que uma noite, tive um sonho esclarecedor...
Um génio, de longas barbas brancas, apareceu-me nesse sonho e perguntou-me se eu queria ver com os meus olhos, quem estava no inferno e quem estava no céu, para depois ser eu mesmo a daí retirar as minhas conclusões.
Caminhámos juntos calmamente até ao Pinhal de Marrocos. No meio do pinhal, afastou com o bordão uma moita de silvas, e disse-me que o Inferno era ali.
Aos meus olhos surgiu um terreno relvado com grandes mesas de pedra redondas à volta das quais se sentavam corpos esqueléticos, famintos. Cada um tinha uma colher de madeira, enorme, com mais de dois metros de comprimento . No meio de grande berreiro, iam mergulhando as colheres nos caldeirões de comida que fumegavam nos centros das mesas. Mas como não conseguiam levá-las à boca, por serem demasiadamente compridas, iam tentando roubar, de forma violenta, a comida uns dos outros.
Admirei-me por não ver chamas, nem terrenos calcinados, ao contrário da imagem que o Padre Anibal nos transmitia na catequese...
Ao fim de um bocado, o génio pegou-me ternamente no braço e caminhámos uns cinco minutos para outra zona do pinhal. Por trás de uma enorme pedra, deixou-me ver aquilo que me disse ser o Céu. Espantado, deparei com um sítio em tudo semelhante ao do Inferno. As mesmas mesas, os mesmo caldeirões de comida, as mesmas colheres de dois metros que cada um manipulava!
A diferença é que aqui o ambiente era calmo, silencioso, cordato, ordeiro...
Via-se que aqueles corpos estavam bem alimentados, não zaragateavam. Estendiam as suas grandes colheres cheias de comida e davam-nas na boca uns dos outros.
Fiquei, a partir de então a saber, que o critério de selecção entre o Céu e o Inferno, não é o da bondade ou da maldade. É apenas o da inteligência das almas.
Rui Felício
Que se pode dizer?!
ResponderEliminarMais um belíssimo texto.Ponto.
Será altura de o ADM pensar na publicação de textos,com fotografias do Tonito e bonecos de especialistas.
Tenho a certeza que a edição seria um êxito.
O blogue está a transformar-se num depósito de textos de altíssima qualidade.
É uma resposta clara a quem,eventualmente,pense que isto é só "copo e bucha".
Um abraço.
Obrigado, Rui Lucas.
ResponderEliminarMas, mais do que para te agradecer, venho aqui aproveitar para pedir a quem o ler que este texto se não confunda com quaisquer ícones ou dogmas religiosos. Isso é tema da consciência individual de cada um que não pretendo beliscar.
Esta foi apenas uma forma que encontrei de divagar sobre a superior importância da inteligência sobre todas as coisas.
Um sonho que bem desenha a diferença entre "as ideias"bem estupidificantes" de tantos padres Anibais que ainda pairam por aí...eu diria,é uma sugestiva metáfora do mundo real,dos que têm fome e dos que estão saciados...
ResponderEliminarO texto é claro,Rui.
ResponderEliminarNão deixaste lugar a confusões.
Um abraço.
Este texto está acima de um patamar normal de escrita. Porque envolve uma profunda reflexão.
ResponderEliminarA narrativa, o cenário e as figuras que o envolvem, são o condimento do êxito. Tal como o Rui Lucas disse, sou de opinião que o Rui Felício devia publicar os seus textos, fazendo um triagem daqueles que gostaria de públicar. Se somarmos aos textos, algumas fotos do Tonito, ou a criatividade dos desenhos do Gil,tenho a certeza que a iniciativa seria um êxito.
Um abraço Rui. Continua a oferecer-nos textos como este.
É óbvio que a vertente religiosa de cada um, não sai beliscada com o texto. Julgo que todos os leitores perceberam isso.
Rui!Andas muito inspirado e é sempre um grande prazer ler os teus textos!
ResponderEliminarPorém, desde que comecei a frequentar o FRANK ZAPPA, a ouvir a sua obra, analisando os seus textos e mais tarde a encontrà-lo pessoalmente, fiquei convicto que o Céu e o Inferno sao dois conceitos escandalosamente inventados!Mesmo se, mais tarde, ao encontrar LEONARD COHEN, que também foi monge durante 5 anos em Los Angeles, a sua atitude zen que tanto veicula, me fez bascular para reflexoes positivas!
Cada um de nos tem a sua propria interpretaçao desses dois destinos, tao antipodas. Para o JAMES TAYLOR, o céu aproxima-se da chuva e o inferno, como é obvio, do fogo!"I've seen Fire, I've seen Rain"...
Toda a gente sabe que gosto de entrar em contacto com a alma do FRANK ZAPPA e, tive vergonha de ir outra vez chateà-lo no sàbado, quando jantava com o recem chegado CAPTAIN BEEFHEART, lhe pedi a sua protecçao para o jogo da BRIOSA!!!
O gajo, com aquela cara feia e bigode tao carateristico, pôs-se mau e respondeu-me "Oh!Pà!Jà te disse vàrias vezes que nao posso fazer mais nada por esses gajos!!!Mandem o Presidente p'ra rua e depois talvez se possa arranjar um pequeno milagre"!!!!!!
I hope you understand!
Ao ler este texto do Rui Felício veio-me à ideia a Alegoria da Caverna em que Platão, integrante do pensamento de Sócrates em que “aquele que é mau o é porque não sabe”, passou a atribuir valor às ideias, dando-lhes um pensamento lógico, se o homem pode viver no mundo das “sombras” , da ignorância, mas acreditando no seu mundo, pode, no entanto, atingir “a luz”, a sabedoria, a vida de verdade e sem preconceitos.
ResponderEliminarTemos nesta extraordinária e surpreendente história do Rui Felício, com um início que parecia configurar uma banalidade, uma interessante alegoria entre a ignorância e a sabedoria, entre os maus e os bons, entre o inferno e o céu…
Gostei. Um abraço.
Abilio
Li e gostei.
ResponderEliminarO que acontece com todos os textos que publicas!
Mas desta vez tive de socorrer-me dos comentários(um é teu, porque sabias que eu ia ler...)para também tirar a conclusão final!
Rui lucas esse trabalho que queres atribuir ao ADM, faz parte das atribuições dos amigos que como eu também são ADM´S e que têm capacidade para fazer esse trabalho, que seria muito interessante!
Da minha parte,darei toda a colaboração que me for possível.Vamos pôr esta Rota a andar,com a coordenação de Dom Rafael.
ResponderEliminarVamos a isso!
Desde sempre, desde que me conheço, que procuro conhecer um génio que seja capaz de me explicar a diferença entre o Céu e o Inferno.
ResponderEliminarEste génio, o tal de longas barbas brancas, num verdadeiro passo de mágica, leva-me até ao Pinhal de Marrocos e, num ápice, tudo esclarece.
Faltou-lhe mostrar-me o Purgatório mas penso que deixa isso a cargo da minha inteligência...
Meu caro Felício, obrigado por, mais uma vez, teres mostrado o teu génio.
Aquele abraço.
Tenho por hábito, quando os textos me merecem maior reflexão, não ler os comentários publicados antes de fazer o meu.
ResponderEliminarEntão não é verdade que isto é só "copo e bucha"?
Até no Céu e no Inferno...
Publicar estas conversas para quê?
Então não é verdade que elas já estão publicadas? Ou querem armar em intelectuais?
Dom Rafael, defende-te!
Agora os amigos da onça dizem que só tens de ser coordenador, que é o mesmo que dizerem que tens toda a responsabilidade na publicação da "coisa"...
Mas, bem vistas as coisas...
Atão?!
Rui Felício, tu é que devias ir para padre!
ResponderEliminarMas eu estou como o Viana: mais do que o Céu e o Inferno, mim sempre me fez mais confusão o Purgatório. E isso ainda mais se agravou há poucas semanas quando o padre da minha terra, na missa de um funeral, disse que "a Lúcia perguntou à Nossa Senhora, numa das aparições, onde estava uma amiga dela que tinha falecido. E a Nossa Senhora disse-lhe que a amiga estava no Purgatório... e que iria ficar lá até ao fim do mundo. Mas tenhamos fé que entretanto já lá não esteja".
Isto não é falta de respeito por instruções superiores?!
Meu Caro Paulo Moura,
ResponderEliminarE tu tens o céu garantido!
Porque és um homem inteligente. Rapidamente descobriste que jamais conseguirias levar à tua boca uma colher com dois metros de comprimento. E por isso chegaste a acordo com os teus semelhantes para que eles te alimentassem com as suas compridas colheres. Em troca de tu os alimentares a eles com a tua.
Chama-se a isto partilhar com os outros as nossas potencialidades e receber deles a partilha das suas.
Aliás, neste forum, não vejo ninguém que tenha o inferno como destino.
Ai era isso?! E eu que estava a pensar deixar a comida escorrer pelo cabo da colher... ou pegar pela colher junto à concha... ou cortar a pega! Queres ver que vou mesmo para o Inferno? Ou para o Purgatório... até ao fim do mundo?...
ResponderEliminarÉs inteligente, mas não te armes em espertalhaço...
ResponderEliminarAs colheres estavam presas ao pulso com uma corrente apertada. Não dava para lhes pegar pela concha.
Se for para o Purgatório, só espero que não sejas advogado de acusação (ou "acusa São", no caso)
ResponderEliminarO Rui Felício sonha de forma brilhante!
ResponderEliminarEntre o céu e o inferno a difereça está realmente na inteligência para usar o bom senso.
Poderia ser tão simples...
Mais um interessante texto, Rui! Tal como ao Abílio, também eu pensei, no início, que seria coisa banal, mas afinal, escreves um texto que tem muito para pensar!!!...
ResponderEliminarObrigado!
Olha o Moreirinhas!
ResponderEliminarO Felício fez com que interrompesse a sua viagem aos Antípodas...
E, pelo que vi, o Abílio também.
Estão ambos os dois de parabéns ( O Felício e o Abílio).
E, há que dizer, o Moreirinhas também.
É caso para dizer que, nesse caso, são ambos os três que estão de parabéns e a ambos os três eu mando um grande abraço.