... mar pão ... mar cão ...
Lagos, 16 de Março de 2011. Sete e trinta da manhã.
“Estrela do Mar”, embarcação de pequeno calado, dobra a barra e faz-se ao largo. Ao leme, Mestre Florival, rosto sulcado pelas rugas que o mar esculpiu, samarra pelos ombros, um boné companheiro de tantas fainas descaído para os olhos calmos e experientes, com que observa o oceano palmo a palmo. Rotina de todos os dias.
Uma hora de viagem. Lá ao longe, a silhueta esfumada de Portimão, enquanto a rede vai descendo sob o marulhar das águas e o “toc-toc” ritmado do motor, batendo lá no fundo da traineira.
Hora a hora, o Sol vai subindo no horizonte. Uma enorme bola de fogo, que cobre com a sua luz generosa, um mar de prata. É tempo de refeição. É tempo do farnel, que se come no religioso ritual de todos os dias: o pedaço de pão, o canivete com que se corta a fatia de queijo, o gole de vinho retemperador para a pesada tarefa que se segue – o erguer das redes…
Foi boa a pescaria do Mestre Florival. No rosto moreno, a alegria do esforço compensado, na lotaria que o oceano amiudadamente lhe reserva.
O fim da faina, quando o sol já se deita no regaço do mar. A satisfação do regresso a casa. De partilhar, com a sua companheira de labuta, do caldo fumegante que ela, no sobressalto do caminhar pela vida ao sabor das marés, vai preparando, na ânsia de o ver pisar terra firme.
À noite, ao serão, numa roda de amigos, o baralho de cartas batido no tampo da mesa de mármore gasto pelo Tempo, o cigarro barato pendendo dos lábios, Mestre Florival fala deste ou daquele exemplar mais corpulento içado na rede, ou, quem sabe, do António José, que desapareceu ali mesmo ao virar da barra, sem que ninguém lhe pudesse acudir.
Os outros ouvem, num silêncio magoado, irmanados na dor e comungando do mesmo pensamento: o mar dá, o mar tira. Mar pão. Mar cão.
Q.P. (Março de 2008)
“Estrela do Mar”, embarcação de pequeno calado, dobra a barra e faz-se ao largo. Ao leme, Mestre Florival, rosto sulcado pelas rugas que o mar esculpiu, samarra pelos ombros, um boné companheiro de tantas fainas descaído para os olhos calmos e experientes, com que observa o oceano palmo a palmo. Rotina de todos os dias.
Uma hora de viagem. Lá ao longe, a silhueta esfumada de Portimão, enquanto a rede vai descendo sob o marulhar das águas e o “toc-toc” ritmado do motor, batendo lá no fundo da traineira.
Hora a hora, o Sol vai subindo no horizonte. Uma enorme bola de fogo, que cobre com a sua luz generosa, um mar de prata. É tempo de refeição. É tempo do farnel, que se come no religioso ritual de todos os dias: o pedaço de pão, o canivete com que se corta a fatia de queijo, o gole de vinho retemperador para a pesada tarefa que se segue – o erguer das redes…
Foi boa a pescaria do Mestre Florival. No rosto moreno, a alegria do esforço compensado, na lotaria que o oceano amiudadamente lhe reserva.
O fim da faina, quando o sol já se deita no regaço do mar. A satisfação do regresso a casa. De partilhar, com a sua companheira de labuta, do caldo fumegante que ela, no sobressalto do caminhar pela vida ao sabor das marés, vai preparando, na ânsia de o ver pisar terra firme.
À noite, ao serão, numa roda de amigos, o baralho de cartas batido no tampo da mesa de mármore gasto pelo Tempo, o cigarro barato pendendo dos lábios, Mestre Florival fala deste ou daquele exemplar mais corpulento içado na rede, ou, quem sabe, do António José, que desapareceu ali mesmo ao virar da barra, sem que ninguém lhe pudesse acudir.
Os outros ouvem, num silêncio magoado, irmanados na dor e comungando do mesmo pensamento: o mar dá, o mar tira. Mar pão. Mar cão.
Q.P. (Março de 2008)
Mestre Florival era pescador em Lagos. Há mais de três décadas, saí com ele para a faina ao largo de Lagos. Foi ele que me inspirou a rabiscar estas singelas linhas. Fi-lo em sua honra, em 2008. Repito-o hoje, ciente que, pela idade que já tinha, o estou a fazer em Sua memória. Os pequenos detalhes da sua frugal refeição, observei-os enquanto balançavamos levemente sobre um mar calmo, com Portimão como pano de fundo. Trabalhava sózinho na sua pequena embarcação. Um barco modesto. Tão modesto quanto ele ...
ResponderEliminarO mar é uma beleza e uma delícia para os olhos para quem o observa de terra. Chego a desejar vê-lo revolto, alteroso, ameaçador, protegido pela segurança da minha janela.
ResponderEliminarMas o mar pode ser cão, para quem nele procura o sustento.
É deste mar, também belo, mas encerrando inauditos perigos que o Quito nos fala. Mais do que isso, de como é dura a vida de um pescador, à custa de cujo esforço mal remunerado, intermediários e comerciantes sem escrúpulos, vão retirando mais valias para nos servirem a preços muitas vezes exorbitantes o peixe que ele pescou.
Como sempre, o Quito lembra-nos, pela sua certeira pena, figuras que a nossa mente conhece mas esquece...
Brilhante, Quito.
ResponderEliminarBem hajas por trazeres até junto de nós o Mestre Florival.
Quito, pela tua brilhante escrita fiquei a conhecer este mestre Florival e a sua luta no dia a dia duma vida dura e às vezes esquecida.
ResponderEliminarUm abraço
Abílio
O que mais hei-de dizer? apenas obrigado Quito por mais esta delícia.
ResponderEliminarQuito
ResponderEliminarAinda bem que houve um mestre Florival. Caso contrário não tinhamos tido a possibilidade de ler este conto com a tua assinatura.
Um abraço.
Obrigado,Quito.
ResponderEliminarMais uma pérola de grande valor.
Um Abraço Quito.
ResponderEliminarTonito.
Vivi cada momento por ti descrito como estivesse lá,junto a vós ouvindo o sr.Florival,mestre da Estrela do Mar...
ResponderEliminarA autenticidade e o afecto que pões na tua escrita são demasiado envolventes!
Lá voltaste a Lagos.Para matar saudades!
ResponderEliminarO mestre Florival foi figura de proa nesta viagem que fizeste pelo mar num dia de pescaria!
Serviu para para retratar quão dura é a vida do pescador.
Sendo nós um país por vocação maritima desde os mais remotos tempos, é confrangedor verificarmos hoje em dia a esta desgraçada situação em que só se olhou para o betão e se despresou quase por completo o MAR!
O mar que tanto nos podia dar!
Práticamente resta-nos esta pesca artesanal, e mesmo assim em nada é protegida!
E para sobreviverem os pescadores lá vão arriscando a vida!
São com textos destes que ainda vamos conhecendo melhor esta triste realidade!
Parabéns!
A dureza da luta pela sobrevivência, sempre na mira da pena escorreita do Quito.
ResponderEliminarDesta vez tendo por campo de batalha o mar, o tal que guarda muitas lágrimas de Portugal.
Mais um belo texto do nosso Romancista.
Abraço.
Um belíssimo texto!... Leva-nos a pensar e a admirar esses homens como o Florival.
ResponderEliminarObrigado Quito!
O Florival merecia ouvir ler este lindo texto onde lhe prestas homenagem.
ResponderEliminarIria gostar!
Mais uma vez me deliciaste com este teu lindo texto.
ResponderEliminarObrigada!
Um beijoca