Estava um dia frio e as nuvens circulavam num bailado fazendo adivinhar a chegada de chuva.
Sentei-me na esplanada do centro comercial e comecei a saborear a primeira bica da manhã, olhei para o saco do Expresso imaginando o manancial de surpresas que traria. Comecei a retirar os “cadernos” passando os olhos pelos cabeçalhos. Ao sorver mais um gole de café olhei em volta e pareceu-me ver um rosto que me pareceu familiar. Era um homem não muito alto, cabelo grisalho e meio despenteado, a barba de dias, disfarçava a sua esquálida placidez. Sobre um nariz afilado e vermelho descansavam uns óculos de armações e lentes grossas que mais acentuavam a magreza do rosto e que umas costas ligeiramente arqueadas realçavam. A roupa de marca, desbotada, apresentava-se ligeiramente suja, e os sapatos gastos acentuavam o cansaço de passos lentos e inseguros. Os nossos olhares tocaram-se e tive a estranha sensação de me parecer conhecer aquele rosto mas não saber de onde.
Ao virar da primeira página da Revista Única começava a ler o artigo da Clara Ferreira Alves, quando ao meu lado ouvi uma voz “desculpe, posso sentar-me”. Não me dando tempo de balbuciar qualquer negativa, sentou-se de imediato dizendo “desculpe a minha atitude mas estou de passagem, desesperado e cheio de fome, não como há mais de 24 horas e queria pedir-lhe se me pagava qualquer coisa que pudesse comer”. Olhei para ele de novo e de novo tive a sensação daquele rosto não me ser de todo desconhecido, “aqui só se for uma sandes e algo de beber”, disse-lhe, “pago-lhe um galão e uma sandes de queijo”, anuiu com a cabeça.
Não comeu, devorou com rapidez e sofreguidão tudo o que o empregado trouxe, perguntei-lhe se não comeria mais uma sandes, vi pela sua hesitação que se ela viesse também a comeria, e assim aconteceu. Quase em surdina foi murmurando desculpas pelo atrevimento e abuso de se ter sentado à mesa, olhando à volta como tendo vergonha foi-me dizendo, “sabe eu estou desesperado, também já vivi bem”, olhando para o Expresso, “também o comprava todos os sábados…tive uma fábrica em S. João da Madeira, vivia no Porto próximo da Avenida da Boavista e da Foz…(parava de vez em quando escolhendo as palavras) um dia a minha mulher adoeceu gravemente, passei a acompanhá-la em consultas no Hospital de S. João e nos tratamentos e internamentos no IPO… descuidei a gestão da fábrica que, com a minha ausência, começou a não cumprir com os prazos de entrega das encomendas, a produzir mal e pouco, e os Bancos e as Finanças não perdoaram, tive que declarar falência. Tentei arranjar emprego mas ninguém queria um velho falido com mais de cinquenta anos. A minha mulher morreu já lá vão uns anos (um largo silêncio se instalou, começou a chorar… sem lhe dizer palavra, procurei reconforta-lo pondo a minha mão no seu ombro…recompôs-se)… o meu filho é engenheiro na Nokia, na Finlândia, casou por lá e de nada quer saber, nem ao funeral da mãe veio. Nem sabe se ainda existo. Fui sobrevivendo vendendo o que me restava, na razão e na medida em que as portas dos amigos se iam fechando. Fiquei reduzido a uma cama, um sofá, uma televisão e pouco mais. Tudo foi vendido para sobreviver. Chegou o momento em que deixei de poder pagar a renda do pequeno apartamento que tinha alugado na Rua do Bonjardim… depois foi o empurrão definitivo, o despejo. Vi-me perdido na rua acompanhado duma mala com o pouco que ainda tinha. Cruzei-me com alguns vizinhos e disse-lhes que ia viajar, sabendo no íntimo, que não acreditavam no que lhes dizia. Decidi não mais ali voltar, tinha no bolso os meus últimos euros. Por fim vi-me na necessidade de contactar alguém de família, a quem sempre encobri a real situação de pobreza a que tinha chegado. Telefonei a uma irmã que vive em Lisboa, disse-me estar em casa da filha que reside nos Açores, e que só voltaria dentro de três a quatro meses já que estava a acompanhar a filha e o neto acabado de nascer. Fiquei em pânico ao ver-me sem um teto, sem um lugar para onde ir. Vagueei sem rumo, sem saber por onde nem para onde, até que vencido pelo cansaço me sentei num banco do Jardim de São Lázaro. Adormeci sem querer, e disso me dei conta quando acordei com um safanão dum miúdo que me berrava – quero o teu blusão – empurrou-me, caí no chão e então vi voar na sua mão a minha mala com as últimas migalhas que me restavam, ainda tentei correr mas as pernas recusaram-se a obedecer às ordens que lhe dava e vi desaparecer o rapazola e a mala. Fiquei com o que tinha no corpo e cada vez mais só. Andei dum lado para o outro, passei a dormir na estação de São Bento. Um pequeno bar que ali há passou a alimentar-me com os restos daquilo que se não vendia. Fui aprendendo a sobreviver…e a mendigar envergonhado da situação a que tinha chegado. A minha irmã deve estar já em Lisboa e ontem apanhei uma boleia que me trouxe até Coimbra. Nada comi ontem, hoje vim até aqui porque estava cheio de fome e frio, aqui sempre está mais quente. Vim na esperança de encontrar alguém que me desse um pouco de comer…(uma lágrima furtiva saltou de seus olhos), obrigado senhor”.
No decorrer da história que fui ouvindo e observando, a cada expressão sua e modo de falar mais me convencia de que não estava na presença dum estranho. Perguntei-lhe o nome e por onde teria andado em novo. Disse-me que se chamava Raul, que estudou e sempre viveu no Porto mas que veio alguns anos passar férias à Figueira da Foz.
Raul…, pensei, rebobinando memórias de férias na Figueira. De repente lembrei-me dum Raul num daqueles grupos de praia de que faziam também parte umas moças da Covilhã. Perguntei-lhe se não seria ele. Levantou a cabeça, virou-se para mim a sorrir dizendo que sim que nessas férias conheceu a Gabriela com quem se veio a casar. Lembrei-me logo da Gabriela uma rapariga alegre de sorriso franco, loira de olhos azuis, elegante e linda, que voava a dançar.
Disse-lhe o meu nome. Retorquiu “ Abílio, e quando conseguíamos entrar todos do grupo no Casino com um só bilhete?”. Agora sabia com quem falava.
Levei-o à Estação Nova, comprei-lhe o bilhete para Lisboa, e, no abraço de despedida, a certeza de que dificilmente os nossos destinos se tornariam a cruzar nesta vida de incertezas e de acasos.
Abílio Soares
De tão bem descrito, até dói, Abílio!
ResponderEliminarEu sei que tenho as lágrimas à flor dos olhos...
ResponderEliminarMas não terá sido só por isso que elas afloraram quando li o teu inesperado texto, Abílio.
Sentia-as a enevoarem-me a visão, a dificultarem-me a leitura à medida que nela avançava, ao mesmo tempo que se me apertava o coração entre a mágoa e a revolta.
Nesta sociedade empedernida, nesta selva em que desviamos o olhar do moribundo para não termos que lhe acudir, nesta feira de vaidades em que, se preciso for, o pisamos para mais facilmente subirmos um degrau na escada dos nossos egoísmos, são pedradas como aquela que arremessaste que abalam o pântano das nossas comodidades.
E que nos despertam para a realidade que teimamos em não querer ver.
Obrigado Abílio, pelo teu pungente, oportuno e admirável texto.
Obrigado ainda pelo calor humano com que, por momentos, suavizaste a dor daquele homem...
Também me comovi.
ResponderEliminarComo hoje estamos bem e amanhã como será....
Esta crise tem sido terrível para muitas famílias.Temos que ser solidários e olhar para a sociedade que está mais próxima de nós.
A dor mais aguda daquele homem, ele o saberá melhor do que algum de nós, há-de ser, segundo penso, o abandono e o afastamento daqueles de quem esperaria apoio, como é o caso dos filhos, dos amigos mais chegados, a indiferença e a frieza das pessoas com quem se cruza, o distanciamento dos poderes constituídos...
ResponderEliminarMais ainda do que a perda dos bens materiais a que a sua vida o tinha habituado!
Arrepia! Bem hajas, caro amigo!
ResponderEliminarAté dói! E ...assusta!???
Abraço
Triste e real texto o teu, o que acabáste de descrever! É um entre tantos outros, tão ou mais pungentes do que este! Os sentimentos aterdoam-me a cabeça e o coração aperta-se-me na impotência de nada poder fazer! Esporádicamente, vamos ajudando quem se abeira de nós, mas e os outros?!como vão sobreviver??? Que País é este e que sociedade é esta, cuja disparidade de meios, deixa "apodrecer" e deixa pessoas que certamente durante grande parte da sua vida lutaram pela sua dignidade e seriedade, esconderem-se agora atrás de uma pobreza envergonhada? Sabes Abílio, para aqueles que nunca tiveram nada e que graças ao seu trabalho ou a outros meios, conseguiram alcançar uma sólida estabilidade na vida, é fantástico!!!! Agora, quando se teve tudo e por doenças ou outros reveses da vida, se ficou sem nada...aí meu amigo, deve ser dramático, sobretudo quando ao longo da vida, a triste ilusão de que se teve amigos, nos é negada nessas alturas, pelo fechar da porta desses mesmos, que nos adulavam e que quase nos traziam ao colo!
ResponderEliminarSuprema crença e ironia do destino!!!!
Para mim hoje foi mais um dia de arrasar!
1ºFoi um poema que o Jorge Monteiro publicou, que me pôs a chorar toda a manhã!
Agora, este teu texto...já quase não tenho lágrimas....sabes que mais meu amigo, só me apetece fazer como a avestruz...enterrar a cabeça e não querer ler ou ouvir mais nada! Fiquei com medo!!!!
Um beijo e obrigada pela sacudidela que me deste com a tua escrita.
Queria ressalvar a palavra "aterdoam-se",por atordoam-se. Peço desculpa...
ResponderEliminarTexto tocante.
ResponderEliminarInfelizmente vão sendo mais frequentes casos destes.
Há dois ou três anos,uma moça da nossa idade que até já tinha sido assistente de Biologia,ofereceu-me o corpo em troca de uma refeição.
Claro que ela teve a sua refeição,mas eu recusei o corpo.
São as profundezas da vida,querido amigo.
Obrigado pelo texto.
Um abraço.
Não há dúvida que é um texto fantástico, embora o seu contúdo seja muito triste e que infelizmente é apenas (como se costuma dizer) a ponta de enorme iceberg que está a imergir em Portugal!
ResponderEliminarDesta vez calhou-te a ti Abilio seres testemunha de um caso real que muitos de nós ouve contar mas que desvaloriza e encolhe os ombros!
Soubeste ouvir, não ficaste indiferente e foste solidário resolvendo uma pequena parte , mas que pode ser decisiva, na vida desta "pessoa com rôsto" que até se verificou que partilhou contigo bons momentos no passado!
As voltas que o mundo dá!!!!!
Um abraço!
"se imergir fôr com "e"...leiam em conformidade!
ResponderEliminarComovente!
ResponderEliminarA realidade é esta...
O distanciamento afectivo por parte do filho impressiona-me brutalmente...
Ficaste,de certeza, com o seu contacto para a palavra amiga de que ele tanto necessita...
No FB, também postei sobre a miséria dos sem-abrigos.
Meu caro Abilio
ResponderEliminarLi este texto,absolutamente rendido à realidade cruel da escrita. Disse-te um dia, aquilo que não é novidade: escreves muito bem e consegues envolver as pessoas na tua escrita. Este caso verídico, deixou-me muito emocionado. Ninguém diga que está bem.Por vezes a roda da vida desanda. Obrigado, Abilio, por teres trazido até nós estes testemunho
Quantos Rauis por aí não andam,mesmo até compostinhos...
ResponderEliminarUm abraço
Júlia Faustino
Uma pedra de gelo caiu na bica matinal do Abílio.
ResponderEliminarTratou-a com o calor que lhe foi possível e quem faz o que pode faz o que deve.
Mas o Abílio sabe que o Raul é apenas uma muito pequena parte de um enorme iceberg.
Daqui este seu texto, ao qual eu chamaria "desabafo".
E... é bom desabafar as mágoas com os amigos.
Aquele abraço.
A história que aqui vos trouxe é dramática e triste, uma chamada de atenção para o tempo que estamos vivemos, para os sinais cada vez mais evidentes duma sociedade em crise.
ResponderEliminarÉ bom saber de amigos sensíveis. Não vos queria incomodar. Difícil é ser indiferente.
Obrigado pelas vossas amáveis palavras.
Abílio
Abílio, Foi exactamente o que pensei, Quando há pouco li o teu texto impecavelmente escrito. Pensei exactamente que tiveste a intenção de nos passar uma mensagem que te vem perturbando, não com um Raul, mas com todos os que em nosso redor sofrem e observam a sua vida e a dos seus, a entrar em declínio sem volta...
ResponderEliminarNós merecíamos que a tua sensibilidade e a tua boa escrita aparecesse mais vezes neste lugar, onde expressamos estórias e sentimentos.
Um beijo.
Bolas, companheiro.
ResponderEliminarAnda um nó para baixo e para cima. Tenho que o desatar.
O Raúl foi mais reconfortado. E não foi só pelo pequeno almoço.
Foi por ter reencontrado o seu amigo Abílio.
Um abraço
O Abílio traz-nos uma "novela dramática"que bem desejaríamos que fosse ficção!
ResponderEliminarQue texto extraordinário! Nem sei o que dizer!
ResponderEliminarPenso que algo semelhante poderia acontecer a qualquer de nós!...
Obrigado, Abílio!