... quantas memórias ...
Vivo acorrentado a memórias. E às grilhetas da saudade. E se a bela cidade da Figueira da Foz é o ponto de referência de muitos, é na Praia de Mira que me sento no regaço de minha mãe. Para ali fomos de férias muitos anos. E nem sequer preciso de olhar a praia, para desfiar o meu rosário de recordações. Na entrada da povoação, quem vem pela avenida principal, passando um pequeno pontão, encontra, ao seu lado direito, uma singela casa. E foi aí, que passei alguns dos melhores momentos da minha vida. Recordo o meu pai, de calções brancos, a remar tranquilamente nas águas calmas da Barrinha, enquanto nos cruzávamos com os barcos da apanha do moliço. Carregados do precioso adubo, deslizavam em silêncio, com o seu timoneiro à ré, que, com uma longa vara, impulsionava a embarcação na sua rota. Depois, no meu pensamento, aquele mar revolto. E as barracas cónicas, de riscas multicolores, perfiladas no areal, como soldadinhos na parada. Lembro, com emoção, aqueles que zelavam pela frondosa Mata. Não posso deixar de falar deles, pelo menos, dos que a memória ainda me consente: o Páscoa, o Bastos, o Arrais, o Heitor, o Clemente, o Miranda, entre outros. E ao invocar aquele mar, detenho o meu olhar na arte xávega. E da preocupação que era para os familiares dos pescadores, a partida dos barcos, para a faina. E nós ali, a comungar daquela aflição partilhada. À proa, o mestre comandava a remada. No meio, dispostos dois a dois, os remadores, em número de doze. E, à ré, o pescador que ia desembaraçando a corda e que tinha a função de lançar as redes. A luta era dura. De proa empinada ao céu , como pedindo a protecção Divina, o barco galgava a primeira onda, para depois quase submergir no mar cavado. Depois, o segundo e terceiro assalto, até navegar agora num mar infinito e sereno, e se afastar em remada larga e compassada. Depois, por lá ficava umas horas, esfumado no horizonte, que mal dava para se distinguir o seu dorso robusto e amarelado. A chegada era outra correria. Os bois, que até ali esperavam pacientemente o regresso da embarcação, corriam agora num percurso limitado, pelo areal, por forma a não deixar escapar o peixe do emalhado da arte. A rede, logo que chegava, era cercada pelos banhistas, enquanto alguns miúdos, de gatas, apanhavam este ou aquele exemplar fugido das redes. Depois era a lota. E o Balseiro, com a pala do boné descaída sobre os olhos e a sua prodigiosa barriga, a licitar os cabazes. E as varinas de anca cheia, no dizer de Cesário Verde, maioritariamente vestidas de negro, a colocarem os cestos à cabeça em cima de uma rodilha, e a abandonarem a praia em passo curto e apressado, levando o pescado para a praça. Mais tarde - muito mais tarde - foram as passagens pelo parque de campismo. Do aspirar o aroma dos pinheiros, ao entardecer. Do acender do candeeiro a gás, e de ouvir o murmurar dos outros campistas na penumbra. O cheiro do frango assado, das sardinhas e dos pimentos. E a voz coada do mar, para lá das dunas. E o cheiro intenso da maresia que me penetrava as narinas. E é aqui, nesta minha solidão campesina, que por vezes cerro os olhos e caminho pelo labirinto dos sentidos, remando - tal como o meu pai na Barrinha – pelas vielas de um Tempo que não volta, resvalando nas minhas deliciosas e infindáveis memórias.
Q.P.
Q.P.
Mais uma brilhante narrativa do Miguel Torga, digo do Quito! Excelente! Caro amigo ! Só "tiras" 20´s!!!
ResponderEliminarAbraço
Mais uma narrativa que assenta na realidade, como é teu apanágio, amigo Quito ! quase diria que conseguiste " largar " o corpo e simplesmente voaste, de papel e caneta na mão, procurando de olhos fechados, essas paragens algumas décadas atrás...
ResponderEliminarGostei. Um abraço e até sempre.
Infindáveis memórias que nos transmites de forma deliciosa.
ResponderEliminarContinua a remar, meu caro Quito, e a mostrar-nos o que vais observando no labirinto dos teus sentidos.
Aquele abraço.
Não posso deixar de dar mais um abração ao Quito
ResponderEliminarpor me fazer recordar tantas alegrias tanta gente gira que conheci.Quem passava na rua d e espreitava lá para o quintal em nossa casa via a "Roulotte" que o meu pai comprou há uns 50 anos e que fomos dos primeiros campistas que usavam o camp municipal( onde o sr Heitor era o guarda)desde a páscoa até ao S. Martinho,práticamente todos os fins de semana.
Claro que eu e o Fernando temos muitas recordações....a sorte é que a roulotte não falava..
Os pais trocaram a Fig da Foz por a praia de Mira
porque a minha mãe chegava a fazer matriculas para o Extern S,Luis de Gonzaga dentro de água a tomar banho.
Quito obr pela tua memória
Belo texto, Quito!
ResponderEliminarEu, pouco frequentei Mira, mas o meu pai amava a Tocha e era lá que eu fazia muitas das férias de verão e, a Tocha tem muitas semelhanças com Mira no aspecto etnográfico.
Desde Verões que nem me lembro que os meus Pais me levavam sempre para a Praia de Mira. Tudo o que contas é como se estivesse a rever aqueles tempos.
ResponderEliminarBem hajas!
Quito, este teu texto levou-me até terras de Mira, onde também passei férias durante alguns anos.
ResponderEliminarO relato da ida dos barcos para o mar, a sua chegada à praia e o espectáculo do peixe a saltar na areia são imagens que passaram pala minha memória e causaram alguma saudade desses belos tempos.
Obrigada Quito, beijos para ti e para a São.
E as "Banhistas" Quito? E as "Banhistas"?
ResponderEliminarTemos de aguardar pela versão do BobbyZé?
(até pareço a São Rosas):))
Eu?! Eu só me relembrei das bolachas americanas...
ResponderEliminarQuito
ResponderEliminarAdorei este texto pois o Quito vai-nos falando das suas vivências e uma pessoa vai-se relembrando do que também viveu, mesmo que tenha sido noutra época.
Também me trouxe à memória um motorista na minha tropa, uma jóia de homem, o 80. Era um dos remadores nos barcos da pesca da sardinha em mira e a sua estatura metia respeito dentro do autocarro. Iam todos socegadinhos. Era muito calmo. O que um artigo nos pode trazer à memória. Por tudo, obrigado.
Um abraço
também eu passei vários anos pela praia de Mira.
ResponderEliminarOs pais da Celeste Maria eram uns "fãns" desta praia, acampando no Parque de Campismo, ou até ficando na Pensão do Maçarico!
Acampavamos todos na mesmatenda grande já com os filhos!
Eu pessoalmente não era grande amante da vida de campismo...dava a minha contribuição para puxar a luz até à tenda, construia a banca de cozinha com canas,etc
Mas as casa de banho eram um suplício!!!!!
A barrinha era um espaço agradável...mas aos domingos era de fugir!!!
Tudo passa e agora é muito raro lá ir!
Mas este texto é um reviver esse tempo e que o Quito tão bem nos retrata.
A minha prenda para vós: uma reportagem minha de uma tarde na Barrinha da Praia de Mira, com a minha Mãe, em Julho do ano passado. É a Praia de Mira em todo o seu esplendor.
ResponderEliminarBela prenda, carais !!!
ResponderEliminarGrandes recordações da "meia - laranja" !!!
Naquelas mesas de madeira, muito arroz de frango eu comi, canudo !!!
Siga a música e toca o bombo ....
Eu sabia que ias gostar, Quito!
ResponderEliminarAbre aço!
(só não me disseste ainda se recebeste o meu e-mail para a São, sobre a foto do Tonito em tela)
Gostei de ler as memórias da tua praia...
ResponderEliminarA minha praia foi Buarcos e dela também tenho
boas recordações...
A descrição que fazes deste desfolhar de memórias tem um formato cinematográfico, perfeito, em que nos fazes rwviver aquelas imagens que também retivemos de algumas férias passadas em Mira.
ResponderEliminarUm abraço
Abílio
A Ponte do Galante, a meio caminho entre a Figueira da Foz e Buarcos, foi a minha estância de veraneio durante anos seguidos com os meus pais.
ResponderEliminarMais tarde, já com a malta do Bairro passei a frequentar Mira no Verão. São recordações diferentes mas ambas marcantes.
Ao ler o texto do Quito,vi a plácida barrinha, as ondas alterosas do mar, a faina dos pescadores e até senti os cheiros das sardinhas assadas com pimentos, como se lá estivesse agora.
E vi o cavalgar violento dos barcos a partirem as ondas para passarem a rebentação.
Cheguei mesmo a imaginar as ancas cheias das varinas.
Com estas duas simples palavras, o Quito não precisou de se alongar na descrição destas mulheres, para as retratar na perfeição.
Querido Quito, por diversas razões que tu bem conheces, ainda não tinha tido a oportunidade, nem disposição de "passar os olhos" por mais esta narrativa tua!
ResponderEliminarAinda bem que o fiz, ou antes, nem sei se fiz bem, porque ao fim de a ler e reler não sei umas quantas vezes, comovi-me ao reviver os mêses de Agosto de à muitos anos atrás, quase uma eternidade, passado na Figueira da Foz por uma Família grande, muito unida e muito feliz que era a minha!As recordações são tão boas, tão nitídas, tão apaziguantes que sacudo a cabeça sem saber se tenho ainda tudo no sítio!!!!
Foram tempos tão bons, tão bons!...sabes Quito, o que me está acontecer neste peciso momento???? Está-me a chegar ás narinas aquele cheirinho delicioso do "tal" arroz de frango com chouriço e salpicão feito nos caçoilos de barro e levados em cestos de palha para a praia à hora do almoço...havia também os pastelinhos de bacalhau...e os pastéis de massa tenra???Hum que delícia!!!! Juntavam-se os toldos, abriam-se as mesinhas, as tampas dos cestos saltavam e saltavamos nós de contentes com tanta fome, com tanta coisa boa e com os cheirinhos inebriantes que saíam lá de dentro, excitando-nos a nós crianças e dando azo a raspanetes dos mais velhos e pior que isso à ameaça de que não teríamos o prometido gelado ao lanche, se não nos portássemos bem! Já nem vou contar mais nada, pois não sei quando pararia e não quero cansar-vos com recordações que me são tão queridas e tão só minhas!
Gostava muito de poder transcrever para aqui e em poucas palavras toda a felicidade que a minha Família me proporcionou e transmitiu na minha infância...mas sinceramente não sou capaz, não sei!!!!
Quanto a Mira, também há recordações, mais esporádicas e mais tardias, já mais perto do meu casamento....infindáveis dias de praia, Sábados e Domingos cheios de sol, quentes, quentes...com Mãe, Tios e Tias sempre de olho aberto em cima dos "pobres" nubentes que não tinham um "bocadinho" para namorar!!!!
Amóri, muito obrigada por este bocadinho de felicidade que tu, com a tua maneira tão real e tão sentida de expores o que te vai na alma, me obrigaste a viver também!!!! Por breves momentos, hibernei num passado quase irreal!!!
Um beijo querido Amigo!