... foto retirada da Net ...
De novo regressei a esta nave de solidão. Para trás, ficou Lagos e sua agitada vida de um verão escaldante. Lameirinha regressou à rota do meu quotidiano. Percorro agora o planalto beirão, embrenhado nos meus pensamentos. Desfolho, mentalmente, duas páginas do “Jornal do Fundão”, que acabei de ler. Por entre dezenas de artigos, lá está o Nuno Francisco. A Sua prosa é uma alvorada para os sentidos. Nos alcatruzes dos dias que giram sem fim, o autor lança amarras na Vila de Penamacor. E é conduzido pela Sua pena, que entramos na barbearia de João Gonçalves. Uma velha barbearia. Um olhar atento, mostra – nos o ambiente quase austero do estabelecimento. Ao centro uma cadeira de braços forrada a cabedal. Os braços puídos do uso, dão-nos a ideia do resvalar do tempo. Depois, o enorme espelho por cima de um balcão, onde se misturam tesouras com navalhas, pinceis e artigos de perfumaria. Ao lado, suspenso de um prego, um secador de cabelo. Na parede, três cabides onde os clientes podem pendurar o chapéu e o casaco. Uma fita de plástico, junto ao espelho, como expositor de pentes para o cabelo, completam o quadro. De olhos fechados, navego agora pela prosa do Nuno Francisco e a beleza da sua escrita: “ …o cabelo branco espera no chão da barbearia pela passagem da vassoura. Traga-se o tempo com vagar. Descose-se o fio da conversa tépida. Com paciência, porque o tempo não corre contra ninguém. Nem ninguém corre contra o tempo. Na barbearia de João Gonçalves, em Penamacor, vivem-se dias abrigados de um verão com ares de impiedoso. A vila vagueia na planície da serenidade. Tal como deve ser. Ao Tempo nada deve, porque ele nada lhe trouxe. Apenas levou. Gente. Quanto muito é Penamacor quem deve pedir contas ao Tempo…”. Depois, como que sentado na cadeira da barbearia, o Nuno houve o monólogo do barbeiro: “… Penamacor já foi populosa e com mais actividade ligada à agricultura. Agora não tem uma coisa nem outra. Tinha mais comércio porque havia mais gente. Isto tudo foi-se despovoando, sempre partiu muita gente para Lisboa e para outros centros (…), cá vou aguentando isto com alguma clientela da velha guarda, estou aqui por devoção, não por obrigação. Já cortei o cabelo a um par de gerações, aos avós, aos pais e aos netos. Já vou na quinta geração…”. Também a ourivesaria de Maria Ferreira olha o futuro com desconfiança. Fala da Esquadra da Polícia que já não existe. Da Guarda Republicana que também partiu. E do Quartel de tempos de antanho, hoje desactivado. Afinal, pela prosa singela destes dois habitantes desta longínqua Penamacor, derramada pela pena de Nuno Francisco, cedo o leitor se apercebe que o artigo é escrito com as cores da desertificação e da solidão. Na retina, fica uma visão romântica de uma barbearia deste Portugal profundo. Da riqueza interior daqueles que resistem, e da sua singela vida longe dos grandes centros. E, quiçá, da saudade de todos aqueles que um dia por ali passaram, muitos cumprindo a vida militar, e que de novo voltaram a partir à procura de um futuro risonho. Mas ficaram as memórias. De uma população amiga, que com o decorrer dos anos foi sendo tragada pelo Tempo. Do barulho da água límpida a jorrar das fontes. Da gloriosa roupagem das paisagens nos dias de Primavera. Da nostalgia das tardes mornas. Do terno silêncio das noites estreladas.
Quito Pereira
(Texto dedicado ao meu amigo Rui Felício, alferes miliciano que foi, em Penamacor)
Quito Pereira
(Texto dedicado ao meu amigo Rui Felício, alferes miliciano que foi, em Penamacor)
Conheces-me,Quito,o suficiente para saberes que são as pequenas coisas, que parecem insignificantes, e que a tua pena privilegiada sabe trazer aos nossos sentidos, são aquelas que me comovem e que me transformam o riso com que muitas vezes escondo as minhas emoções.
ResponderEliminarSó o facto de me dedicares este atractivo e bem escrito repositório de pequenos nadas que me obrigam a reflectir e a recordar, seria já razão para me emocionar, pela amizade que te tenho.
Grato por isso. Mas outros motivos houve para parar, para pensar.
A Companhia Disciplinar de Penamacor ( não era Alferes ainda, mas sim Aspirante quando por lá passei ), era uma pequena Unidade Militar para onde eram mandados os soldados que tinham sido condenados por faltas de indole militar ou mesmo civil.
Os milicianos que para lá iam ( foi o meu caso e o de mais sete aspirantes recém formados em Mafra ), na sua maioria, eram escolhidos por se terem "portado mal" na sua vida política académica ou de simples cidadania.
Era uma espécie de castigo para aqueles que, sem nunca terem sido condenados a penas na vida civil ou militar, porque contra os quais o regime não tinha conseguido fabricar provas suficientes para os condenar.
O regime servia-se deste processo discricionário para os "avisar" de que se deviam portar bem no futuro.
Era fácil de ver!
Todos os que para ali foram comigo tinham estado, sem excepção, envolvidos em movimentos académicos de contestação ao regime.
No meu caso, tinha acabado de fazer parte de uma Direcção de uma secção da AAC, criada à revelia da Pide,para expulsar a Comissão Administrativa que o Governo lá tinha colocado.
E soubémos que os milicianos que por ali tinham passado antes de nós obedeciam todos às mesmas caracteristicas. Lembro-me do Helder Reis, homem do teatro, que esteve lá antes de mim por idênticos motivos.
Poderia dizer-se,por isso, que Penamacor era terra que eu tinha ficado a detestar. Mas, pelo contrário!
Possibilitou-me, dentro do quartel, conhecer figuras humanas inesquecíveis com as quais muito aprendi.
E fora do quartel, estabelecer laços de amizade com as pessoas da terra, de trato afável, rude mas sincero.
E nos arredores, ter namorado com uma professora de Aldeia do Bispo, que suavizou o meu desterro.
Parabéns pela tua crónica. Começa a tornar-se repetitivo dizê-lo, mas a tua forma de escrever, a escolha das palavras e, sobretudo, o cenário que crias para a tua exposição, prende-nos a atenção, faz-nos pensar...
Neste caso, toda descrição gira em torno de uma figura quase mítica que, infelizmente, vai desaparecendo das nossas terras: O Barbeiro!
Desculpa a extensão do comentário...
Caro Amigo Rui
ResponderEliminarEu já sabia do teu degredo por aquelas terras. Porém - e também acontece comigo - em situações em que seria lógico querer esquecer, sentimos por vezes saudade. Percebi isso no outro texto que escrevi sobre estas terras do Portugal profundo. Mas quando peneiramos o Tempo, percebe-se que nem tudo foi mau. No interior, as pessoas - sobretudo as mais idosas - são rudes, mas boas e leais. "Honra" ainda é uma palavra que por estas bandas, se lê no dicionário. Por isso, não me admira o teu comentário. Da emoção que que terá sido namorar a ouvir o jorrar da água na fonte. E aqueles pequenos comércios de que te servistes, com o senhor A,B ou C ao balcão e que te trazem nostalgia. Também sou assim. Vivo de memórias e também da lembrança das pessoas e locais que passaram pela minha vida. Em Portugal ou até em cenário de guerra.
Recordo os amigos daquele tempo. Não tens que te desculpar da extensão do comentário. Este monólogo a dois, sobre tempos de antanho, refresca-nos a alma. No meu caso, porque sei bem de que cor se pinta a solidão ...
Abraço
Tanto o Texto do Quito, como os outros dois textos em comentário do Rui e do Quito, constituem uma peça literária de "alto gabarito", como diria o Tonito!
ResponderEliminarCongratulo-me, eu o Castelão,por este "Encontro de Gerações, proporcionar estes belos momentos de escrita!
E com um abraço aos dois, termino com o último parágrafo do Quito!
"Este monólogo a dois, sobre tempos de antanho, refresca-nos a alma. No meu caso, porque sei bem de que cor se pinta a solidão ..."
Quando leio textos do Quito e do Rui só me apetece uma coisa:deixar de escrever.
ResponderEliminarFica,mais que comprovado,que não tenho competência para o fazer.
Escrevo isto com a maior sinceridade.
Mas,na minha forma atabalhoada,vou tentar escrevinhar o que me veio à memória.
Que me lembre,nunca fui a Penamacor.
Mas,ao longo da minha vida adulta,foi nome de terra de que nunca esqueci o nome.
Para lá foram desterrados dois amigos meus:um deles foi metido numa "canadiana",depois de arrancado do balcão do Mandarim,directamente para lá.Mais tarde vim a saber que refez a vida na Alemanha(nesse tempo RFA).O outro apareceu morto num campo próximo do presídio militar.
Como aspirante miliciano fui dar uma recruta para Aveiro.Um dos meus recrutas era o "Penamacor".
Ao tempo eu tinha vinte e poucos anos.O "Penamacor" tinha trinta e muitos e continuava com a condição de "preso".Depois da instrução,recolhia à cela!
O problema dele era simples:cerca de 15 anos antes,tinha-se envolvido numa rixa no Alto de Pina.Teria morto um opositor à facada,na véspera de se ter apresentado para iniciar a vida militar...
Durante 6 meses falei bastante com o "Penamacor".Ele já tinha um filho com 16 anos!
Um dia pediu-me que o deixasse saír a uma 5ª e regressaria no domingo à noite.Eram os anos da mulher e ele não podia falhar!
Encolhi-me e lá lhe disse que não era possível,blá blá.
Ele respondeu-me:eu vou mesmo.Se o meu aspirante autorizar,no domingo à noite estou cá.Se não autorizar,a partir de amanhã passarei de preso a desertor!
Lá tivemos uma conversa de pé de orelha,porque o "Penamacor" todos os dias,após o jantar teria que recolher à cela.
Durante aqueles dias alguém "recolheu" por ele.
Nesse domingo à noite,com o coração nas mãos,fui ao Quartel.
Na cela,lá estava o "Penamacor" de cara lavada,um grande sorriso e com um cheiro que tresandava a "bien être"...
Demos um grande abraço e fumámos um charuto enquanto beberricámos uma Macieira.
Conversámos e creio que chorámos em conjunto.
Esta a minha recordação de "Penamacor".
Um abraço a todos.
Estava para encerrar aqui esta geringonça, que já me ardem os olhos...mas ainda fui ás mensagens na esperança que era avisado que tinha caído um comentário!
ResponderEliminarE ainda bem que fui, pois termino em beleza!
Amigo Rui Lucas o seu texto/comentário complementa muito bem e passa "a monólogo a três", esta cor da solidão
Ao Rafael e ao Rui Lucas envio a minha saudação.
ResponderEliminarEste monólogo a dois, passou agora a ser um monólogo a quatro. Já só nos falta um baralho de cartas...
Abraço
E trunfo é copos...
ResponderEliminarPois Rui, mas é preciso estarmos vigilantes. O Rafael e Rui Lucas costumam esconder os ases nas botas de cano alto como no Oeste Americano...
ResponderEliminarIsso não me assusta.
ResponderEliminarTenho algum treino disso quando no velho Centro jogava à sueca com o Leite Braga.
Uma vez chegaram a aparecer em cima da mesa, na mesma jogada, dois ases de espadas...
..até temo em que tudo acabe em duelo na Rua A, com o Viana e o o Abilio, sentados no Samambaia a beber uma tequila com o chapéu descaído para os olhos ...
ResponderEliminarBoas razões tem o Fernando Rafael para se congratular. Também ele merece um abraço e o meu apreço porque conseguiu criar um espaço onde os amigos se encontram, umas vezes para se divertiram uns com os outros, outras vezes para falarem de coisas sérias, muito sérias, para trocarem experiências e rebuscar recordações que lhes são queridas. É a matriz do próprio Rafael que fica espelhada neste saudável encontro.
ResponderEliminarO Quito. Centralizando o texto numa barbearia, consegue por ali fazer trespassar toda a envolvente social de uma pequena vila. Mas não uma qualquer vila, a escolha recai em Penamacor. Mero acaso? Nem pensar. É óbvia a intenção de presentear um amigo. E assim o faz, utilizando a sua escrita límpida, serena, directa.
Presenteou o amigo mas também nos presenteou a nós com mais este belo texto.
Um abraço. Outro para o amigo presenteado, outro para o Rui Lucas que diz que não sabe escrever...
Carlos Viana.
Jogar cartas,não sei.
ResponderEliminarBotas de cano alto,há cerca de 40 anos que não uso.Cresceram-me as pernas e as varizes.Já não botas para o meu número...
Mas,para qualquer jogo em que trunfo seja copos,estou apto.
Quando penso em Penamacor vêm-me à memória aquela aventura nos Três Povos lembras-te? Dava um bom artigo :)
ResponderEliminarBjo do filhote
Nao podia deixar de fazer um comentário ao que acabo de ler! Simplesmente brilhante a escrita destes meus amigos. Tal como o Rui Lucas escreve, também eu sou um simples aprendiz da escrita! Leio Pessoa, leio Miguel Torga, leios outros escritores e também tenho o previlégio de ler o Manuel Bastos!!! Mas na minha "biblioteca" da vida também ficam a fazer parte o Quito, o Rui Felício e o Rui Lucas! Outros haverá mas a timidez e modéstia os "atrofiam"!!!
ResponderEliminarMas, perante estes *vultos* literários.(!!!???)...
Para finalizar...na batota, dita sueca ou mesmo no King...uns rufias da minha "guerra", meus amigos do peito, eram de tal maneira batoteiros, que às vezes haviam 3 baralhos em jogo..e até 3 ases de trunfo...e alguns ingénuos não davam por isso!
Grande abraço, neste manhã do 11 de Setembro!
NYC
Vou aqui intrometer-me na "barbearia",não que alguma vez a tenha frequentado,mas pela descrição real e emotiva do texto.
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