A velhota D. Guilhermina já estava com 93 anos. Nos últimos cinco tinha sido internada por 4 vezes, sempre com AVC’s, cada um deles mais profundo e grave que o anterior. O bombeiro que a veio buscar a casa, alta madrugada, para a transportar para o hospital, perante o ar inerte e frio da velha, sentenciou, com ar entendido, que desta ela não escapava.
Olhou fixamente o genro e disse:
Olhe, Sr. Alcides, para mim é como se já estivesse morta. Transportá-la para o hospital é uma simples formalidade. Uma obrigação legal...
O genro ouviu isto, afivelou um ar pesaroso, mas, bem lá no íntimo, deu graças a Deus por finalmente se ver livre daquela velha chata e por ir tomar posse dos bens que ela ia deixar à filha única, sua mulher.
De manhã muito cedo, informou o patrão que estava de luto e que, por isso, não iria trabalhar nos próximos 5 dias, telefonou à agência funerária para irem fazendo os preparativos para o funeral, ligou às pessoas mais chegadas a dar conta do triste e doloroso desenlace, acarinhou a sua mulher que estava inconsolável a chorar deitada na cama, acordou o padre para o avisar e foi à barbearia do Sr. Elias. Com lágrimas nos olhos, foi carpindo a mágoa de tão funesto acontecimento, enquanto o barbeiro lhe fazia a barba.
O Sr. Elias, como se imagina, encarregou-se de espalhar a notícia. Em poucos minutos toda a aldeia e arredores, sabiam da morte súbita da D. Guilhermina.
De barba feita, fato preto e óculos escuros, o Alcides Ferreira apanhou a carreira das 11 horas para a cidade, foi a uma loja da Baixa comprar uma gravata preta que atou ao pescoço e subiu até ao Hospital.Estranhou que a empregada da recepção, quando questionada por ele sobre o paradeiro da D. Guilhermina, e se ela lhe podia dizer o nome do médico que a observou, aquela lhe respondeu secamente, enquanto batia continuamente nas teclas do computador sem dali desviar os olhos:
- Quarto 34, Medicina Geral, 3º andar. O médico que a acompanha é o Dr. Tomás de Sousa
As ideias atropelavam-se na sua cabeça. Não estava a entender nada. Afinal o bombeiro tinha-lhe garantido que a velha não tinha salvação possível e agora dizem-lhe que está num quarto do hospital? Os defuntos não são levados para os quartos...
Depois de palmilhar os corredores do hospital, lá encontrou o Dr. Tomás de Sousa que, com um sorriso e uma palmada nas costas, lhe disse que ele era um homem de sorte, que tinham conseguido salvar a D. Guilhermina. Mais uns minutos e já não teria sido possível fazer nada.
No dia seguinte, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página:
O distinto médico dos HUC, Dr. Tomás de Sousa, encontra-se internado com o maxilar inferior partido e duas costelas fracturadas, depois de ontem ao meio-dia ter sido selvaticamente agredido em pleno hospital por um aldeão de nome Alcides Ferreira.
Rui Felício
Não foi desta, mas VAI.
ResponderEliminarVamos todos.
Bem urdido.
Tonito.
No mesmo dia, o DC noticiava:
ResponderEliminarBOMBEIRO BARBARAMENTE AGREDIDO
É denso o mistério que envolve a agressão selvática a um bombeiro voluntário da Ericeira. Deu entrada no hospital de Cascais com fracturas múltiplas e várias contusões graves. O director clínico informou o DC de que o prognóstico é reservado.
A PSP nada quis adiantar sobre o assunto, remetendo o nosso repórter para a PJ.
Também a PJ foi lacónica, dizendo que o crime estava sob investigação.
Ao que o DC conseguiu apurar, o agressor, enquanto descarregava toda a sua raiva sobre o bombeiro, invectivava-o.
"Optimista estúpido", foi o insulto mais ouvido, garante-nos fonte segura.
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Meu caro Rui Felício,
A um conto, acrescenta-se um ponto...
Aquele abraço. É sempre um prazer ler os teus textos.
Carlos Viana.
Meu querido amigo Carlos Viana
ResponderEliminarEstás como o vinho do Porto: quanto mais velho, melhor!
Escrever um artigo destes, é preciso coragem pois há quem prefira não enfrentrar casos reais. Só que Das. Guilherminas e Alcides como neste caso, há muitos por este mundo fora. Ainda hoje a ministra da condição social teve que vir a público precisamente por causa do tratamento a pessoas de terceira idade. O mal está espalhado. Artigo muito oportuno.
ResponderEliminarEsta história narrada com tanto humor, toca num problema muito sério,que há 30 ou 40 anos era impensável! Nos dias de hoje , o "velho" é um enorme transtorno.
ResponderEliminarE eu acrescento, Rui Pato, aqueles que querem ter os seus " velhos queridos" em condições dignas, pq não tem meios no seio familiar, pagam fortunas.
ResponderEliminarPor mês, um idoso chega a pagar mais de 1300 euros.
Onde estão os cuidados continuados?
Cristina Antão
A imaginação e arte do Rui felício, consegue com humor, alertar-nos para um problema que vamos ter que enfrentar...
ResponderEliminarTexto extraordinário!...
Aqui está a questão que me preocupa cada vez mais...
ResponderEliminarVamos fazendo humor e bem, mas é uma problemática grave e dolorosa para os velhos.
Já vou pensando em mim ... como vai ser?
Claro,mais um texto que nos encanta.
O Rui Felício tem o dom de saber imprimir comicidade aos seus textos quando é caso disso. Porém, neste particular,subjacente ao hilariante do texto, existe uma dura realidade. Quando já não há forças e se depende de familiares. Se calhar, o Rui Pato disse a palavra cruel e adequada:TRANSTORNO. Porém,felizmente, há ainda muitas familias, que mesmo sem possibilidades de ter os seus idosos em casa, estão particularmente atentas à forma como são tratados nos lares onde residem. E não se pode verberar, em minha opinião, quem põe familiares nessas casas de repouso, pois muitas vezes, trabalhando marido e mulher, é impossível ter um idoso em casa 12 hores sózinho, como é o caso da selva das grandes cidades. A sociedade criou um monstro. E agora é devorada por ele.
ResponderEliminarUm abraço ao amigo Rui Felício.
A sociedade criou um monstro. E agora é devorada por ele. De Quito Pereira. Que duas frases! Aqui dois polícias começaram a fazer um teatro nas diferentes casas de terceira idade depois de obtida a autorização superior, pois nas idas para uma ocorrência ou outra, aperceberam-se que havia fortes problemas. Um fazia de filho e o outro de pai explorado. Levavam mais dois colegas para tomarem conta das queixas. Tiveram que ser substituídos por artistas profissionais , porque começaram a ficar doentes. Ainda hoje, já lá vão alguns anos, em cada actuação aparece uma ou duas queixas. Fiz voluntariado junto de velhos que terminei à pouco tempo. Nem todas as pessoas dos serviços sociais cheias de boa vontade, muito objectivas na forma de pensar nas suas diferentes idades mas que na velhice a objectividade nem sempre anda a par com a realidade por incrível que pareça, estão aptas a tratar com velhos por muitos cursos de gerontologia que tenham. Criam mesmo problemas quando o que um velho precisa acima de tudo é sentir-se à vontade, em segurança e autónomo, mesmo que não esteja bem assim. É triste mas é verdade. Quanto às referidas casas, "algumas" são explêndidas mas se a pessoa não vai para essas casas ainda em idade de se adaptar a novos usos e costumes, sofre mesmo que o não diga com medo de represálias, que nessas casas até nem existem. A insegurança é constante e reagem bruscamente para mostrarem que não têm medo. É muito complexo. Podem crer, "com o que vi e vivi, admiro muito a vivacidade e juventudo da minha "MALTA", como amigávelmente vos costumo chamar. E a mastigarem...!!!!!!!!!!
ResponderEliminar*Poderia ter sido mais restrito mas não seria tão esclarecedor para todos os que lêm o blogue.
O comentário do Quito, fez-me reflectir:
ResponderEliminarMuitos comprimidos farmacêuticos, que são imprescindíveis à nossa saúde, contêm componentes amargos ou mal saborosos que nos impeliriam, de forma primária, ao afastamento e à repulsa, se não fossem habitualmente envolvidos por uma fina película adocicada que nos facilita a sua toma.
Também os textos que abordam problemas graves, a que não devemos ficar indiferentes, são mais facilmente lidos e digeridos pelos leitores, se uma leve película de bom humor os impregnar e envolver.
Felizmente que o “leitmotiv” desta história, a sua essência, o seu travo amargo, foram assimilados por todos, aos quais agradeço os seus comentários, talvez porque o texto está amaciado e adocicado pelo caricato da situação.
É a realidade e é nesta realidade que todos nós, mais tarde ou mais cedo,vamos cair, sendo certo que em relação á situação com que o Rui Felicio tão brilhantemente nos transmite, os "genros" ou "noras" não se comportam assim.
ResponderEliminarSão pelo menos mais contidos...e só pensam...não exterorizam!
O Carlos Viana no seu jeito introduziu mais umpouco de humor, carregando nos tons mais negros, para realçar este tipo de genros...
O Chico também no seu comentário aborda de uma maneira mais realista esta problemática da vélhice.
É um facto que o prolongamento da vida tem duas faces dificeids de conciliar,especialmente quando o prolongamento da vida se faz sem qualidade e a vélhice se transforma num sacrifício para o próptio e muitas vezes num "fardo" para quem tem de o acolher!
Quito é mesmo como escreves...é dificil domar o monstro...
Após a súmula do Fernando Rafael, poderíamos ficar por aqui porque fechava com chave de ouro.
ResponderEliminarNão resisto, contudo, a comentar o comentário do Rui Felício.
Todos nós, aqueles que o costumamos ler, apreciamos a sua enorme capacidade literária, o seu fino humor, a sua fértil imaginação. Na grande maioria dos seus textos, ressalta a preocupação do humanista puro que, olhando à sua volta, detecta problemas sociais que a maioria ignora ou finge ignorar.
No seu comentário, em duas palavras, explica o que eu não seria capaz de dizer num longo discurso: os seus comprimidos, sendo amargos, são carinhosamente envolvidos numa fina película adocicada para nos facilitar a toma.
Só o "carinhosamente" é meu, como é fácil de ver. Porque sei que o faz com carinho, presenteando os amigos!
Pela minha parte, obrigado. Fico a aguardar, como todos nós, mais uma receita bem aviada.
Mais um abraço.
Carlos Viana.
A velhinha estória do menino que tentava construir uma gamela, semelhante àquela em que comia o avô...
ResponderEliminarPara quê? indagava o pai.
Para o meu pai comer nela
Quando for velho e demente!
Moral da estória:" Filho és, pai serás".