" ...uma corda convida a puxar o fio ..."
Neste meu cirandar de mais de vinte anos por terras da Beira Baixa, fui conhecendo muitas pessoas e lugares. Das planícies áridas de Alcains e da Idanha, ao imponente porte da Serra da Estrela, tenho visto de tudo um pouco deste Portugal profundo. E se por um lado a atracção da Serra traz até ao interior do País muitos turistas, as zonas fronteiriças ancoraram no tempo. São paragens desertificadas, onde reside uma população muito envelhecida, que convive dia a dia de braço dado com a solidão.
Também eu, por vezes, padeço desse mal. Da janela do meu escritório olho a paisagem ressequida nestes dia de Verão, e mal vejo o casario por entre as vagas ondulantes de calor.
Sento-me então ao computador e partilho convosco um pouco deste meu modesto caderno de viagem.
Começamos o percurso na aldeia da Póvoa de Rio de Moinhos. Aldeia airosa, com um bonito e bem cuidado jardim, e uma igreja matriz do século XIX, em perfeito estado de conservação.
Por uma estrada estreita e íngreme, em mau estado, rumamos a Tinalhas. A meio do caminho, do lado esquerdo da estrada, um enorme terreiro. É aí que se realizam as Festas de Nossa Senhora da Encarnação. Festa de origem popular, tinha, antigamente, como momento alto, o lançamento de tropas pára-quedistas, por deferência da Força Aérea.
Falar de Tinalhas é falar de uma povoação com casas senhoriais e de uma banda de música que, em tempos distantes, era das mais conhecidas de Portugal. Como curiosidade, o facto de aqui se venerar a Rainha Santa Isabel, padroeira da cidade de Coimbra. No terreno da festa, existe uma pequena e singela capela, onde, em altar dourado, uma réplica da imagem do escultor Teixeira Lopes aparece em destaque, com o seu manto rosa e de semblante sereno.
Sete quilómetros á frente, viramos à esquerda e entramos por uma rua estreita na Aldeia de Freixial do Campo. A rua, como vos disse, é tão acanhada que mal cabe um carro. De um lado e do outro, alinha-se o casario escuro e granítico. Sentadas às portas, de negro vestidas e lenço na cabeça, as mulheres da aldeia, na sua esmagadora maioria muito idosas, acenam-me ao ver-me passar, e realço aqui a “Ti Ana”, com os seus quase noventa anos, de rosto envelhecido e sorriso de menina. Move-se com dificuldade amparada a um pau, vergada pelo peso dos anos e de uma vida de labuta no amanho das terras e na educação dos filhos. Falo-lhe no conforto de uma bengala. Replica-me que aquele cajado há-de acompanhá-la até ao fim da vida.
Paro então o carro no pequeno largo da povoação. O jorrar da água límpida de uma pequena fonte, contrasta como silêncio da aldeia. Dirijo-me então à taberna dos Morgados. A estreita porta de ferro está fechada. Uma corda a sair por um pequeno buraco convida a puxar o fio. É então que a porta se abre. Lá dentro, um espaço exíguo. Um pequeno balcão em forma de “L”. E dois irmãos. Francisco Morgado e João Morgado. O Francisco é um homem alto, com um boné castanho que sempre lhe vi na cabeça e que lhe descai sobre os olhos. O João é de média estatura, e tem uma triste particulariedade - é invisual.
Surpreendentemente, é ele que está ao balcão e atende os fregueses. Serve copos de vinho, e recebe o dinheiro que conhece pelo tacto. Depois lava os copos com destreza, vira-se para mim e estende-me a mão. Percebo que me reconhece pela voz…
- Senhor Pereira, como está?...vai um copinho…
- Não, João … pode ser uma água fresca…sem gás….
A taberna tem de tudo e funciona também como mercearia. Por uma porta, entra-se noutro compartimento. É a desorganização organizada. Pacotes de arroz, massa e açucar , misturam-se com pantufas, baldes, escadotes, rações para animais, regadores , vasos de plástico, camisas para homem de colarinho aprumado, e brinquedos para crianças que já não existem…
E o João Morgado lá deambula por entre os balcões, trazendo o que lhe é pedido, como se não arrastasse consigo aquela desgraça desde a nascença…
O Rosa e o Semião, de copo de vinho pousado sobre o balcão, juntam-se agora à conversa. Falam do aterro sanitário que quiseram fazer junto à aldeia e em jeito de desabafo dizem-me:
- O senhor Pereira já viu os “figurões”!?....queriam envenenar a água e destruir os nossos poços…vieram para aí uns tipos bem - falantes, todos engravatados, para uma sessão de esclarecimento, era tudo sorrisos, pensavam que lá por sermos da aldeia somos parvos…olhe até o sino tocou a rebate, teve que vir a Guarda Republicana...coitados, estavam entre dois fogos…por um lado cumpriam ordens…por outro eram amigos e conhecidos cá do povo…também não queria estar-lhes na pele…
O Rosa vai ouvindo, acenando afirmativamente com a cabeça, enquanto espanta uma mosca varejeira que lhe pousa na testa. É então que o Francisco Morgado, que de braços cruzados assiste à conversa em silêncio, se mune de um velho jornal que dobra em três partes e vai seguindo com os olhos a trajectória da mosca. De repente, sinto uma pancada seca no meu ombro. Viro-me então, e vejo no chão de cimento, em aflitivo rodopio, o animal alado agonizante. E o Morgado com o jornal na mão em forma de cacete, a dizer-me com voz triunfante:
- Óh Senhor Pereira… matei-a !!!
Despeço-me então daquela “sociedade”. E dos irmãos Morgado. Sempre tive, e tenho, uma enorme simpatia e respeito por eles. Amáveis, de uma educação irrepreensível, tomam conta do negócio que vem de geração em geração. O Francisco, vítima de doença neurológica, cedo abandonou a sua profissão, refugiando-se na taberna que também lhe pertence. O João, nunca frequentou os bancos do liceu, nem os anfiteatros da universidade. Tem apenas e só, a escola amarga da vida. E é nesta simbiose de afectos, nesta fraternidade cúmplice que os une, que exercem com dignidade a profissão que lhes foi legada pelos seus antepassados: … taberneiros…
Dois irmãos, duas vidas, um destino…
Quito Pereira (2OO8)
Também eu, por vezes, padeço desse mal. Da janela do meu escritório olho a paisagem ressequida nestes dia de Verão, e mal vejo o casario por entre as vagas ondulantes de calor.
Sento-me então ao computador e partilho convosco um pouco deste meu modesto caderno de viagem.
Começamos o percurso na aldeia da Póvoa de Rio de Moinhos. Aldeia airosa, com um bonito e bem cuidado jardim, e uma igreja matriz do século XIX, em perfeito estado de conservação.
Por uma estrada estreita e íngreme, em mau estado, rumamos a Tinalhas. A meio do caminho, do lado esquerdo da estrada, um enorme terreiro. É aí que se realizam as Festas de Nossa Senhora da Encarnação. Festa de origem popular, tinha, antigamente, como momento alto, o lançamento de tropas pára-quedistas, por deferência da Força Aérea.
Falar de Tinalhas é falar de uma povoação com casas senhoriais e de uma banda de música que, em tempos distantes, era das mais conhecidas de Portugal. Como curiosidade, o facto de aqui se venerar a Rainha Santa Isabel, padroeira da cidade de Coimbra. No terreno da festa, existe uma pequena e singela capela, onde, em altar dourado, uma réplica da imagem do escultor Teixeira Lopes aparece em destaque, com o seu manto rosa e de semblante sereno.
Sete quilómetros á frente, viramos à esquerda e entramos por uma rua estreita na Aldeia de Freixial do Campo. A rua, como vos disse, é tão acanhada que mal cabe um carro. De um lado e do outro, alinha-se o casario escuro e granítico. Sentadas às portas, de negro vestidas e lenço na cabeça, as mulheres da aldeia, na sua esmagadora maioria muito idosas, acenam-me ao ver-me passar, e realço aqui a “Ti Ana”, com os seus quase noventa anos, de rosto envelhecido e sorriso de menina. Move-se com dificuldade amparada a um pau, vergada pelo peso dos anos e de uma vida de labuta no amanho das terras e na educação dos filhos. Falo-lhe no conforto de uma bengala. Replica-me que aquele cajado há-de acompanhá-la até ao fim da vida.
Paro então o carro no pequeno largo da povoação. O jorrar da água límpida de uma pequena fonte, contrasta como silêncio da aldeia. Dirijo-me então à taberna dos Morgados. A estreita porta de ferro está fechada. Uma corda a sair por um pequeno buraco convida a puxar o fio. É então que a porta se abre. Lá dentro, um espaço exíguo. Um pequeno balcão em forma de “L”. E dois irmãos. Francisco Morgado e João Morgado. O Francisco é um homem alto, com um boné castanho que sempre lhe vi na cabeça e que lhe descai sobre os olhos. O João é de média estatura, e tem uma triste particulariedade - é invisual.
Surpreendentemente, é ele que está ao balcão e atende os fregueses. Serve copos de vinho, e recebe o dinheiro que conhece pelo tacto. Depois lava os copos com destreza, vira-se para mim e estende-me a mão. Percebo que me reconhece pela voz…
- Senhor Pereira, como está?...vai um copinho…
- Não, João … pode ser uma água fresca…sem gás….
A taberna tem de tudo e funciona também como mercearia. Por uma porta, entra-se noutro compartimento. É a desorganização organizada. Pacotes de arroz, massa e açucar , misturam-se com pantufas, baldes, escadotes, rações para animais, regadores , vasos de plástico, camisas para homem de colarinho aprumado, e brinquedos para crianças que já não existem…
E o João Morgado lá deambula por entre os balcões, trazendo o que lhe é pedido, como se não arrastasse consigo aquela desgraça desde a nascença…
O Rosa e o Semião, de copo de vinho pousado sobre o balcão, juntam-se agora à conversa. Falam do aterro sanitário que quiseram fazer junto à aldeia e em jeito de desabafo dizem-me:
- O senhor Pereira já viu os “figurões”!?....queriam envenenar a água e destruir os nossos poços…vieram para aí uns tipos bem - falantes, todos engravatados, para uma sessão de esclarecimento, era tudo sorrisos, pensavam que lá por sermos da aldeia somos parvos…olhe até o sino tocou a rebate, teve que vir a Guarda Republicana...coitados, estavam entre dois fogos…por um lado cumpriam ordens…por outro eram amigos e conhecidos cá do povo…também não queria estar-lhes na pele…
O Rosa vai ouvindo, acenando afirmativamente com a cabeça, enquanto espanta uma mosca varejeira que lhe pousa na testa. É então que o Francisco Morgado, que de braços cruzados assiste à conversa em silêncio, se mune de um velho jornal que dobra em três partes e vai seguindo com os olhos a trajectória da mosca. De repente, sinto uma pancada seca no meu ombro. Viro-me então, e vejo no chão de cimento, em aflitivo rodopio, o animal alado agonizante. E o Morgado com o jornal na mão em forma de cacete, a dizer-me com voz triunfante:
- Óh Senhor Pereira… matei-a !!!
Despeço-me então daquela “sociedade”. E dos irmãos Morgado. Sempre tive, e tenho, uma enorme simpatia e respeito por eles. Amáveis, de uma educação irrepreensível, tomam conta do negócio que vem de geração em geração. O Francisco, vítima de doença neurológica, cedo abandonou a sua profissão, refugiando-se na taberna que também lhe pertence. O João, nunca frequentou os bancos do liceu, nem os anfiteatros da universidade. Tem apenas e só, a escola amarga da vida. E é nesta simbiose de afectos, nesta fraternidade cúmplice que os une, que exercem com dignidade a profissão que lhes foi legada pelos seus antepassados: … taberneiros…
Dois irmãos, duas vidas, um destino…
Quito Pereira (2OO8)
Quito
ResponderEliminarDois irmãos que se uniram enterajudando-se.
A tua fina observação permite-nos conhecer vidas simples do meio rural, que nos dão importantes exemplos!
O Morgado,embora com uma pancada,livrou-te da nojenta varejeira...
Mais uma bela "prosa" à Quito!
ResponderEliminarMeu amigo vai pensando no... título!!!??? Ok?
Parabéns!
Abraço
Lá fui passeando por várias terras, conhecendo novas pessoas independentemente da idade, apercebendo-me de problemas sociais; também me vi a abrir a porta, entrar, dirigir-me ao balcão em L e pedir a tal garrafinha de água, porque a conduzir não bebo alcool. Isto tudo, além de na fotografia ter notado aquele paralelepípedo que vem do nosso tempo e que cai tão bem, pois se fôsse certinho era trabalho do computador e dos raios lazer . Valeu a pena ler e ver.
ResponderEliminarMau! já andas a encostar a barriga ao balcão da taberna!!!
ResponderEliminarMas se os Morgados são taberneiros porque carga d´água vendem garrafas da dita?
Deixando a laracha para trás este teu texto demonstra bem como a tua arte de bem escrever nos consegue fazer imaginar que vamos contigo pelas ruas, viramos á direita e á esquerda,até entrarmoas na taberna e lá vemos os dois irmãos
taberneiros, apertamos a mão ao João, mas aqui porra, não bebo água, pode ser que o vinho não seja surrapa...
E até nos desviamos para não levar com o jornal mata-moscas!
Qualquer dia vou aí para reconstituir essa narração!
Tenho dito!
Se o texto não estivesse assinado pelo Quito, se eu não estivesse já habituado ao estilo de escrita do Quito, poderia ficar na dúvida se esta crónica do quotidiano rural não seria algum dos capítulos de "Imagens na Minha Terra" de Almeida Garrett, em que o escritor intercalava no desenvolvimento do enredo de cariz político, a descrição das paisagens, dos lugares e das pessoas, para criar os cenários em que a trama de fundo decorria.
ResponderEliminarParabéns Quito, uma vez mais.
Vejo que este texto foi escrito em 2008, embora não me recorde de o ter lido.
Isto significa que o Quito terá uma gaveta cheia de pérolas que urge partilhar...
Claro que me enganei! Queria ter escrito "Viagens na Minha Terra". Desculpem o lapso...
ResponderEliminarAmigo Rui
ResponderEliminarNão podes recordar o texto pela simples razão de que só agora o enviei nesta minha colaboração com o blogue. Estava na gaveta.
Abraço...
O que me ocorre dizer é:
ResponderEliminarE fazermos uma excursão por essas terras beiroas?
Deste modo,a leitura destes textos maravilhosos seria enquadrada no cenário,guardado na nossa memória,sempre que te lessemos...
Agendado para as actividades de 2011!
ResponderEliminar"RONDA PELA BEIRA BAIXA"
Prepararem-se Quito/São para a invasão a Salgueiro do Campo e arredores!
Meu caro Castelão:
ResponderEliminarComo na canção de ZECA: ..."seja bem vindo quem vier por bem ..."
Abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCaro Quito!
ResponderEliminarAproveitei parte do teu texto, ou melhor, "pikei" (?) ou ...(espera um pouco....vou ao dicionário, ver como se escreve...!!!?), dizia eu "copiei" aquela dos "bem falantes, todos engravatados...tocaram os sinos a rebate..." para mandar uma mens. para o "Salvem Alvôco das Várzeas", a proposito da construção de uma retrete pública, digo ETAR, mesmo no coração da bela aldeia de gratas recordações familiares.
Abraço e quando organizarem a Rora da Beira Baixa, avisem-me com tempo.ok?
Tenho de ir ver qts "milhas" tenho...para viajar em jacto privado!!!...a pilhas AA
"Imagens da Minha Terra", penso, Felício, que te fugiu a língua para o pensamento.
ResponderEliminarToda esta excelente descrição, são imagens, autênticos retratos, também poderão ser retalhos da vida do Quito.
Mais um saboroso texto que nos transmite o calor e afecto da simplicidade.