FOGO PRESO
Não falhava!
Todos os anos em Agosto, lá ia eu pernoitar em casa do meu
avô na véspera da procissão da Festa das Torres do Mondego. Despertava cedo, no
dia seguinte, com o estralejar dos foguetes que ecoava do outro lado do
Mondego, nas Carvalhosas, com a algazarra dos cães a ladrar e com o barulho
infernal dos bombos dos Zés Pereiras, acompanhados pelos estridentes choros das
gaitas de foles.
Naquele ano, a festa ia ser de estalo. O juiz, António
Fueiro e os restantes componentes da Irmandade era tudo gente de primeira
escolha. Pela primeira vez ia haver fogo de artifício, vindo especialmente de
Gondomar, que era longe como um milhão de diabos. E o melhor que se fazia em
Portugal, garantia o pirotécnico!
Raios parta o sacana do homem, dizia o regedor, referindo-se
ao pirotécnico. Homem duma cana, corroborava o Toino Pataqueiro, enquanto
levava à boca mais um tinto morangueiro e besuntava os dedos num naco de
toucinho cru. Do fogo de artifício iria emergir no ar uma barca serrana toda
engalanada, coisa nunca vista, nem nas Festas da Rainha Santa em Coimbra! Nem
mesmo nas da Senhora da Agonia lá no Minho, acrescentava o vendedor do
foguetório …
No ano anterior, a festa tinha sido um fiasco. O Ti Zé Carne
Assada, que foi o juiz desse ano, só se tinha preocupado em apresentar lucros
com a quermesse e com a venda de bilhetes para o baile no recinto da Junta.
Ainda por cima, entregou o dinheiro todo ao Padre João, para obras na igreja.
Na taberna do Sr. Almeida, o António Fueiro não se cansava
de espalhar a novidade. O coração quase lhe saltava do peito rude quando se
imaginava na noite do arraial a ser aclamado pela aldeia.
No rio, lá em baixo, o pirotécnico afadigava-se a montar o
fogo preso, em duas barcas serranas ancoradas na correnteza, para o grande
festival da noite da festa. Seria dali que os foguetes de lágrimas se
desprenderiam, para espanto dos aldeões e dos forasteiros, varrendo com as suas
luzes multicores o casario da povoação.
E chegou a hora tão ansiosamente esperada. Toda a gente se
acotovelava à beira da estrada de Penacova que atravessa a terra, no pátio da
Junta e no adro da igreja. A um sinal do Fueiro, um impaciente cachopo, limpou
o ranho à manga da camisa e desatou descalço, em louca correria pela quelha que
vai dar ao rio, para avisar o homem dos foguetes que podia começar.
Uma salva de três morteiros assinalou o início. A seguir, a
populaça o que viu, foi o Mondego, lá em baixo, iluminar-se de várias cores e
uma densa nuvem de fumo elevar-se lentamente em direcção à aldeia.
O impacto dos três primeiros foguetes tinha aberto um buraco
no chão meio apodrecido de uma das barcas que se foi afundando lentamente com
todo o arsenal pirotécnico a bordo. Os foguetes disparavam para a esquerda,
para a direita, mas não para o ar, como bichas de rabiar, incendiando o
fogo preso que estava na outra barca.
Porém, o homem de Gondomar tinha parcialmente razão! Como
prometido, uma das barcas serranas boiava nas águas toda engalanada pelas
labaredas e por uma estrepitosa e colorida miríade de chispas. Só lhe faltou
subir aos ares...
Rui Felício
Viveu infância em Coimbra no Bairro Norton de Matos e licenciou-se na UC em Direito.