As “lições” do
Pulga
A mitologia
infantil é ainda mais fértil que a dos adultos, multiplicando anjos e demónios
a um ritmo alucinante. Em Coimbra, nas décadas de cinquenta e sessenta do
século passado, no imaginário das crianças germinava o famoso Pulga, um “vilão”
que disputava o campeonato dos duros, ombreando com os Irmãos Metralha e com o
Capitão Gancho. Só que estes figurões desenvolviam as suas patifarias na banda
desenhada, cercados por heróis invencíveis. Ao passo que o Pulga era de carne e
osso, e impunha alarvemente a sua lei à miudagem, sem que ninguém lhe fizesse
frente…
Como se tivesse
sido ontem, nunca mais me esqueci da minha chegada à cidade, no já longínquo
ano de 1960. Terminado o ensino primário na aldeia, para prosseguir os estudos
no Liceu Normal de D. João III, logo a malta se condoeu da minha triste sina:
- Coitado! Este vai
para o Liceu!... Não te ponhas a pau com o Pulga…
A garotada costuma
tocar o mundo para a frente, mas os meus novos amigos - quase todos filhos de
gente pobre e proscrita do ensino – deixaram-me no ar umas reticências
inquietantes, como se a minha nova escola fosse a cela de um condenado à
fogueira. Minutos depois, já a minha curiosidade havia sido satisfeita: o tal
Pulga era o reitor do liceu… um pequenote que, qual alma penada, fazia cair o
fogo dos infernos sobre quem se lhe atravessasse no caminho.
- Não há-de ser
tanto assim… – Pensei, para os meus botões.
Alguma razão me
assistia para duvidar do calvário que me era anunciado. Na escola, que acabara
de frequentar, também a professora marcava o ritmo das horas com a cana e a
palmatória, usadas sem regra nem parcimónia. E, no entanto, eu conseguira
sobreviver durante quatro longas temporadas aos seus destemperos, sem que
alguma vez o céu me tivesse caído sobre a cabeça. Decididamente, a malta
exagerava. Como é que um menino tão aplicado, e tão bem comportadinho, como eu,
poderia cair nas garras de tal galfarro? Ingenuidade dos meus verdes anos, não
imaginava que, em Coimbra, não passava de um catraio hipercinético e
atrevidote, mesmo ao jeito do buril de tão tenebrosa personagem...
A confirmar a minha
“apetência” por escolas, a minha entrada no liceu foi “triunfal”. Proveniente
das berças, poucos dias depois já era eleito “chefe de turma”. “Posto” que me
enchia de orgulho e me concedia a “regalia” de interromper as aulas de
trabalhos manuais, para saltitar pelos corredores transportando o “livro de
ponto”, uma vez que essas turmas se dividiam e não existia “mão-de-obra
especializada”, para desempenhar tão sublime missão.
Adaptado ao pulsar
da escola, lembro-me que depressa me “apaixonei” pelo Prof. Sousa Santos, de
Canto Coral, que me ajudou a urdir uma peça de teatro para ser representada na
“Festa de Natal”. Novidade absoluta, também com esse mestre comecei a explorar
os segredos da música, centrado na “arte do assobio”: era assim que ia
superando a carestia de vida, uma vez que, em minha casa, não havia tradição,
nem dinheiro para instrumentos musicais e conservatórios. Sem vilões à vista,
durante semanas, o meu novo liceu foi um deslumbramento… Até ao dia em que, a
assobiar como um rouxinol, me salta ao caminho um gabiru de gravata e fato
azul, que encontrei emboscado numa esquina:
- Então, meu
menino, o que andas a fazer por aqui, quando devias estar nas aulas?
Pelas descrições
que me haviam chegado, não tive dúvidas de que aquele meia-dose só podia ser o
Pulga. Mas a pergunta parecia honesta e a “fera” até exibia um ar respeitável.
E que podia eu recear, se estava às ordens da hierarquia?
- Sou chefe de
turma e vou levar o livro de ponto à senhora professora… - Trauteei, pronta e
educadamente, sem sombra de receio.
- E que faz o teu
pai?
- É funcionário
público… - Anunciei, cheio de orgulho, enquanto nos seus olhos vi brilhar um
clarão, a que se seguiu um tremendo tabefe, que me atroou nos ouvidos e me fez
cambalear.
- Não sabes que não
se deve assobiar? – Censuraria ele, antes de virar costas.
A engolir as
lágrimas e a revolta, e enquanto refrescava a vermelhidão do rosto numa pia da
casa de banho, uma primeira “lição” logo extraí: que, no meu país, existia uma
justiça para ricos e outra para pobres.
- O “cabrão” nunca
mais me há-de apanhar… - Jurei para mim próprio, já resolvido a passar à
clandestinidade.
Nunca me faltaram
companheiros para diversas acções de guerrilha, mas eu era dos que não se
contentavam a quebrar vidraças ou a riscar carteiras, actividades a que outros
“operacionais” se dedicavam de forma eficiente. Para mim, o que valia mesmo
eram acções de risco, tais como galgar diariamente as “escadas da vergonha” –
usadas, em exclusivo, pelo Pulga e pelo vice-reitor - ou saltar muros para
fanar os “limões da reitoria”. E foi assim, sem programa político, nem agenda
fixa, que me fui integrando nas “forças da resistência” ao regime vigente. Até
novo “encontro imediato do 3.º grau” me aclarar em definitivo as ideias…
O embate definitivo
aconteceu no quinto ano, quando o Pulga invadiu a minha sala sem dar os
bons-dias. Não corria notícia de ilícitos, mas o pessoal temeu o pior. Quem
podia adivinhar o que ia naquela mente peregrina, sempre na pista de foragidos?
Porém, senti, havia qualquer coisa de errado nessa risonha manhã: a criatura
surgia carregada de livros e, como se vendida ao inimigo, tardava em
descoser-se…
- Quem é o melhor
aluno desta turma? – Inquiriu, por fim, a exibir as dentuças amareladas.
A malta até
respirou fundo, apercebendo-se que estava safa. Sarilho que sobrava inteirinho
para mim, porque, entre todos, eu era quem obtinha as melhores classificações.
O que não era propriamente o mesmo que ser o “melhor aluno”... Como ninguém
abrisse a boca, fixei-me então na professora que, pensei, era quem devia
prestar tal esclarecimento. Mas a pobre nem pestanejava, enquanto os seus olhos
piscos, presos aos meus, pareciam implorar socorro.
- Quem é o melhor
aluno desta turma? – Insistiu o visitante, na sua voz rouca e enrolada, já
estilhaçada a frágil máscara da bonomia.
A turma inteira voltava-se
agora na minha direcção, numa denúncia tão muda como pungente. No entanto,
assim raciocinei, não seria de bom-tom dar-me como “melhor aluno”. Pois se
alguns já me chamavam vaidoso, mesmo sem abrir a boca…
- Quem é o melhor
aluno desta turma? – Havia o franganote de repetir, já meio alterado, desta
seguindo o rasto da malta e a interpelar-me directamente.
- Sou eu quem tem
melhores notas... - Confessei, meio enfiado, como a erguer-me de um banco dos
réus.
O Pulga pousou os
livros sobre a secretária e aproximou-se, como a tirar-me as medidas ao fato.
No fundo dos seus olhos pardacentos observei o mesmo clarão assassino que
registara no outro encontro aziago, anos atrás. Inevitável, quando ele soltou a
mão, desviei a face. A agressão passou ao lado mas, em vez dos merecidos
aplausos, a assistência ficou gelada. Posto em sentido nos segundos seguintes,
impossível me foi escapar ao redobrar da sua sanha:
- É para saberes
que, da próxima, te deves acusar. – Abonaria em seu favor, enquanto vingava a
afronta, administrando-me uma dose reforçada. Para depois rematar, atirando com
um dos livros para cima da minha carteira: - E toma lá isto, que te manda o
autor…
Lembro-me do tipo
ter abandonado o local inchado da sua importância, sem mais comentários,
deixando a professora sem fala e toda a turma em estado de choque. A aula havia
terminado e, a mim, apetecia-me fugir dali para esfanicar aquele troféu… um
livro que exibia uma extensa dedicatória, destinada ao “melhor aluno do 5.º
ano, turma E”. À saída das aulas, num auto-de-fé irrepetível, e de que não me
orgulho, incinerei o “prémio” nas escadarias do liceu: nele se defendia a
presença de Portugal no Ultramar, e a guerra colonial, quimeras que, no sonho dos
meus quinze anos, eu até alimentava.
Fácil é perceber
que a minha luta se iria aprofundar nos anos seguintes, num contestação quase
inútil contra tanta gente a precisar de ser abanada. Com que imaginação me
dediquei então a novas formas de protesto, que passaram pelo desenvolvimento de
técnicas de copianço geral que punham os profes “doidos”? E com que adrenalina
um dia invadi o santuário da Reitoria, para logo despejar, pela sanita, a tinta
ciosamente guardada para a impressão dos pontos escritos?...
Fugaz, mas uma vez
mais extremamente frutuoso, também deste segundo encontro eu havia de retirar
marcantes ilações. Recordo apenas uma verdade até aí insuspeitada, mas de que
até Camões se queixou: que a “pátria” nem sempre presta a devida homenagem aos
seus melhores. É claro que me refiro ao reconhecimento público desse grande
educador, que foi o Pulga. No que a mim toca, e como o seguro morreu de velho,
confesso que, desde aí, dispenso prémios…
Cândido Ferreira
"história digestiva" de Coimbra, extraída do facebook do
Liceu, por sugestão do autor.