Pierino em ensaio ...
(foto net)
Em 16 de Setembro de 1937, a bela cidade de Roma foi berço de
uma criança a quem deram o suave nome de Pierino Gamba. Pierino, desde muito
cedo, mostrou uma especial apetência para a música.
Romeo Arduini, à época
diretor da ópera da capital italiana, ficou fascinado com aquele prodígio musical.
Pierino, com apenas nove anos de idade, tinha assimilado as sonatas de
Beethovan, que decorou em poucos dias.
Arduini, deu-lhe então a oportunidade de dirigir a mais
importante orquestra de Itália, com cento e cinquenta elementos. Pierino, regia
de cor, sem fazer uso de pauta.
A 17 de Dezembro de 1948, acompanhado dos pais, chegou a
Lisboa no “Lusitânia – Expresso”. No Coliseu dos Recreios , repleto de uma
multidão incrédula, executou a Sinfonia Incompleta de Shubert, à frente da
Orquestra Sinfónica Nacional, que naquela época era regida por Pedro de Freitas
Branco. Pierino tinha então, apenas onze anos de idade.
Na bagagem, no dia em que chegou à capital, Pierino Gamba
trazia já consigo mais de duzentas aparições públicas, pela Europa.
Pierino, era um menino como os outros meninos. Um corpo
franzino e um olhar nostálgico. Apresentava-se em público, sempre com a sua
camisa e calções pretos em veludo. Quem o olhasse, não diria que estava ali
alguém como uma memória prodigiosa. Um talento. Não manifestava qualquer
nervosismo antes dos concertos.
Entretinha-se a lançar um novelo de lã ao ar,
enquanto batia palmas e de novo o agarrava com as suas mãos delicadas como
cristal.
Do muito que se escreveu, a leitura deste pequeno extrato de
um artigo de um reconhecido médico psiquiatra da época. Dizia o clínico:
“ Pierino, tem já uma personalidade bem vincada; de caráter
firme, predominantemente introvertido, temperamento arrebatado, grande
atividade e instintividade, joga e brinca violentamente como os rapazes da sua
idade; embora um pouco distante, é extremamente compreensivo, tem vários
interesses, o inevitável cinema, a leitura apaixonada de livros de aventuras e
particular habilidade manual e aptidão para a mecânica.
De grande excitabilidade emocional, mostra-se medroso perante
os animais, os cães e até as borboletas; por vezes retraído e tímido ele que,
subindo ao estrado de dirigente, domina e arrebata orquestras e multidões. Até
no estudo se mostra caprichoso, discute por vezes as interpretações, até que se
integra completamente no espirito do autor “
Em Londres, teve mais um dos seus momentos de glória. O
Harigan – Arenas, foi pequeno para albergar as dez mil almas que ali acorreram.
Naquele dia, pela batuta de Pierino, um público conhecedor e
em silêncio, pôde ouvir Beethoven, Mozart, Mendelsshon, Rossini, Verdi,
Mancinelli, em acordes harmoniosos. No fim, foi tal a onda de entusiasmo e de
exaltação, que foi necessária a intervenção policial, para proteger o maestro
de palmo e meio, do excessivo acolhimento de tão grande plateia.
Numa das suas passagens por Lisboa, onde regeu a Orquestra
Sinfónica de Madrid, muitas foram as opiniões de críticos musicais, todas elas
de grande elogio a Pierino Gamba. Mário Paulo Freire, no “Jornal de Notícias”
do Porto, escreveu:
“ Assombro ! Não há, não tenho outra palavra para classificar
o que vi no Tivoli: assombro ! Tudo o que se tem escrito nos jornais, tudo o
que eu possa escrever aqui, não vale um fósforo queimado, perante aquele
assombro ! Eu tinha um grande desgosto se não tivesse ido ao Tivoli ver com os
meus olhos o pequeno Pierino Gamba regendo a Orquestra Sinfónica de Madrid.
Manifestei esse desejo e prometeram-me uma entrada que era para mim um
sacrifício, porque teria de estar de pé toda a noite, mas eu aceitava esse
sacrifício só pelo desejo de ver, de analisar o pequeno Pierino, diante da sua
Orquestra. Afinal, a sorte que protege os teimosos, favoreceu-me com um
precioso balcão na primeira fila, próximo do palco. O Tivoli estava cheio,
apesar do preço dos bilhetes. O meu custava 140 escudos. (…) Mas o que eu fui
fazer ao Tivoli foi ver, não fui criticar. Fui tomar contacto com um fenómeno
que os meus olhos viram cheeinhos de assombro e que eu teria mágoa enorme se
não tivesse visto.”
Aquando de um ensaio com a Orquestra de Madrid, os músicos
riram-se quando ele apareceu naquele seu jeito despretensioso e em calções,
duvidando das capacidades do pequeno maestro. Pierino, não se assustou com os
risos e, quando acabou o ensaio, disse para a orquestra:
- No fim do primeiro andamento, a trompa tocou um dó em vez
de um ré, o clarinete entrou antes dos dois compassos da letra B, o fagote, no
segundo tema, tocou um mi por um sol …
Depois disse:
- Agora podem rir à vontade, o ensaio está terminado …
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A sala é pequena, escura e pesada. Encostado a uma parede, um
piano centenário tapado por uma coberta. Dois sofás em veludo carmesim e uma
estante de livros, compõem o mobiliário. Também várias fotografias expostas de
antepassados. Porém, naquela galeria de recordações, a fotografia de um jovem simpático aparece em destaque. É Pierino.
C.C. parou no tempo. Fala de Pierino como ele tivesse ainda
onze anos de idade. Ela, C.C., sempre que começava a temporada de Ópera e
Bailado, deslocava-se a Lisboa, a caminho do Teatro Nacional de São Carlos. Um
dia, foi ver Pierino reger. Ficou fascinada com aquela criança e numa tarde,
acompanhada de uma prima, bateu à porta de uma família abastada que residia na
capital e onde o menino estava hospedado com os pais. Havia uma relação de
amizade entre as duas famílias – a italiana e a portuguesa.
Pierino recebeu-a e agradeceu a caixa de frutos secos que C.C
lhe levou. Também um soneto de sua autoria. Em troca, na sua simplicidade, o
pequeno maestro ofereceu-lhe aquela fotografia que ela estima como se da foto de
um filho de tratasse.
C.C., chegava a ir a Lisboa ao Cais de Alcântara, receber
Pierino Gamba, para suas atuações. Então, o pequeno maestro descia as estreitas
e longas escadas que do barco o traziam até ao cais, sempre acompanhado dos seus
progenitores, que com ele vinham no vapor de três chaminés fumegantes. Vapor, romântica
palavra, para identificar um navio de passageiros. Desses momentos de
confraternização no cais, com o pequeno italiano, C.C. tem fotos que me mostra,
com orgulho. Guarda religiosamente aqueles fragmentos do passado, como se o
passado fosse presente.
Pierino Gamba, já de idade simpática, a residir nos Estados
Unidos da América, jamais se recordará desta sua incondicional admiradora, que
transporta no coração ao longo de tantas décadas, a paixão pelo menino - prodígio.
Como se ele fosse o filho que ela não teve.
Quito Pereira