Há um silêncio acolhedor, neste final de tarde ensolarado.
Sentado num banco de pedra no átrio da igreja, fecho os olhos e deixo-me
envolver pela brisa morna que envolve a aldeia. Estranho tempo este, no coração
do Outono.
O povoado, parece adormecido. Não se vê ninguém. Os mais
novos partiram para a cidade, trabalhar nas fábricas que lhes permite o
sustento.Voltarão ao render do dia, quando a noite já se derrama pelas
vielas frias e soturnas.
Regressam cansados, encostados aos muros de granito. Apenas
as suas sombras se arrastam ao ténue clarão dos candeeiros mortiços, como
bonecos articulados sem alma e sem vida. Ao redor da aldeia, aqui e ali, uma ou
outra escada a trepar às oliveiras. São os que ainda fazem da agricultura o seu
sustento. Como a formiga, vão amealhando nas alojes das suas casas, a azeitona
e o vinho que jorra da torneira do pipo a compasso.
Lá fora, na noite fria,
ainda se ouve o balir dos animais no redil.
Depois, há os outros. Os que se aproximam do cais da existência,
encostados à bengala. Já não têm força para trabalhar, nem para tratar dos seus
parcos haveres. Dependem da comunidade e vão prolongando as suas vidas,
calcorreando as ruas estreitas, deste aglomerado de casas modestas. Não
morreram fisicamente. Mas morreram no dia em que deixaram de poder ir à horta.
Morreram no dia em que deixaram de atrelar a carroça ao jumento. Morreram no
dia em que jaz no chão do pequeno quintal, o cesto de verga da vindima.
Morreram no dia do milagre do azeite. Morreram.
Acordo da minha letargia outonal, embrulhado nos meus
cavernosos pensamentos. Lá longe, no horizonte, começam a formar-se castelos de
nuvens grossas e pardas. Em breve, choverá, nesta trégua de outono. O Farromba,
passa agora por mim, arrastando uma perna, apoiado numa bengala castanha, em
madeira. Percebo-lhe a pressa de chegar ao lar de idosos, antes que o hino da
água se abata sobre a aldeia e os poços generosos acolham no seu ventre, o
sangue que vai ser necessário em tempos de terras ressequidas.
Pela rua empedrada e estreita, fujo também da borrasca
anunciada. E, ao meio da viela, ali, naquela esquina escura, vejo o João na
soleira da porta da mercearia, que também é taberna. Pressente-me apenas,
porque é invisual, e estende-me a mão. Depois, conversamos. Fala-me das
dificuldades do pequeno negócio. Dos clientes antigos, em que palavra dada,
valia mais que letra de lei. Dos cadernos de fiados, com que ajudava muita
gente. E dos outros.
Dos mais novos, que lhe passam à porta com a maior indiferença.
Que trazem da cidade, os produtos que ele também vende, alheios à sua
generosidade de antanho para com os familiares dos que agora o ignoram e o não
ajudam. E eu, revoltado e num impulso, manifestei-lhe por palavras doridas, uma
solidariedade vã. Porque não passava de um jorrar de emoções atiradas ao vento,
quase sem sentido, neste turbilhão de egoísmos e ingratidão, de uma sociedade sem
memória. Esse drama, que já vai
corroendo o mundo campesino.
Naquele momento, também eu pressenti que estava no dobrar de
uma página do Tempo. Que me encontrava sentimentalmente amarrado a uma esquina
da Vida.
Quito Pereira