terça-feira, 18 de agosto de 2020

A BAILARINA

A Bailarina

Nos dias que correm, vivemos cada minuto com a necessidade do reajuste. Não tanto porque saibamos bem o que queremos mudar e para quê, mas tão somente porque não conseguimos dominar o momento presente. Este é o enigma da mudança em tempos incertos.
Pensemos que o facto de não podermos compreender o cruzamento das coordenadas do presente abre as portas à incerteza e à desconfiança. Por isso, mal por mal, vale mais avançar para a casa seguinte, pois pode ser que lá se encontrem as respostas por que ansiamos.
Cada cabeça tem a sua sentença e de todos os lados nos chegam opiniões de especialistas que afirmam, uns, uma coisa e, outros, o seu contrário. Por isso, reforço, queremos acreditar que a mudança é a solução e há sempre a confiança de que “pior não fica”.



Numa crise semelhante, na altura da Gripe Espanhola, em Meijinhos e noutras aldeias do Monte da Camba, a razia e mortandade era enorme. Numa primeira fase tinham partido os mais velhos, os mais débeis e doentes. Religiosamente, tinha-se-lhes dado todos os tributos que o amor e a honra mereciam. Eram avós e pais que tinham contribuído herculeamente para a construção da comunidade em tempos instáveis do início da Primeira República.




Os rapazes viris, que tinham andado perdidos pelos campos de França a servir de alvo às balas alemãs e que tinham conseguido voltar, eram poucos, mas a cachopada era muita. Em cada casa havia alfobres de vida e a casa do Esteves não era exceção. A fertilidade media-se em bocas que depois era preciso alimentar, mas também podia ser negociada em braços para os campos, única forma de produzir o que se comia. Quanto maior a prole, maior poderia ser a fome em determinados anos, mas também maior poderia ser a fartura, se a terra, o clima e os temporais se ajeitassem a bem das famílias.




Ora, depois de ter levado os avós, a megera veio buscar os netos e o rancho do Esteves foi o primeiro a ver partir um filho após o outro. A partir daí passou à casa de um e outro vizinho e daqui a outros, que era uma coisa por maior. Onde ela fincava o dente, sabia-se que a espiral cresceria, agigantando-se e levando aldeias inteiras. De forma ingénua, ou talvez não, nesses vales encavados do Montemuro, as pessoas só conheciam a peste pelo nome de "bailarina", isso devido ao bailado macabro em volteado que a gripe fazia a partir do seu epicentro. Aos pais apertavam-se os corações quando ouviam falar da morte de menino ou menina na aldeia ou em casa de vizinho e às mães o mesmo coração sangrava de dor adivinhada, com a certeza de que estariam em breve a amortalhar um dos seus.




A mulher do Esteves, depois do funeral do terceiro filho, a sua mais bela menina, passou a noite em claro, dando largas ao pranto que não podia soltar durante o dia perante os outros seis filhos. Já pela aurora clara, quando a promessa de um novo dia se fazia adivinhar pelos rigores laranja que via sobre a Serra de Santa Helena, um dos seus cachopos acordou e, vendo a mãe sentada num dos bancos da janela cortejadora, olhando pela vidraça, perguntou-lhe o que se passava e se estava tudo bem. Então ela, dando-lhe o seu melhor sorriso respondeu:

¬— Sim, filho, vamos ficar todos bem!

E nós também! Fiquem bem!

 Professor Antonino Silva

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