sábado, 19 de fevereiro de 2022

O QUE EU QUERIA ERA O TRATOR - Texto do Professor Antonino Silva

 



O que eu queria era o trator….


É sempre um pouco difícil, se não algo pedante, referirmos o nosso pequeno mundo como sendo o mais perfeito, onde as pessoas são as melhores e os nossos atos os mais corretos. Muitas vezes se partilham mensagens sob o tema ‘no nosso tempo é que era’, como se os tempos atuais não fossem. Mas a verdade é que os paradigmas educacionais, a gestão dos afetos e as trocas do tempo de estar por coisas que alienam foram substancialmente refundidas nas últimas três décadas. Há mais oferta, mais acesso e menos tempo. Por isso, tenta-se compensar o tempo que não temos e que não damos oferecendo um bem material que faça lembrar ao ofertado, pelo menos, a memória de quem lho deu.

Não me cabe agora laborar em torno das máximas do querer, do precisar e do merecer, mas a verdade é que nem sempre temos o que queremos, nem sempre precisamos do que temos e nem sempre merecemos tê-lo. Pessoalmente, sempre confiei na sabedoria dos meus pais para gerirem o pouco que nos davam segundo o mérito. Não terei ficado traumatizado por um irmão ter recebido, merecedoramente, um carrinho e eu ter recebido nada. Sabia que a curto prazo brincaríamos os dois com o mesmo, sem que ele perdesse o registo de propriedade. Outras vezes o brinquedo não era exatamente o que queríamos, mas a gratidão era genuína.

Nesse tempo, pouco pedíamos e tudo agradecíamos. Educação? Será, mas era também muita capacidade de ver o mundo e de perceber que se a mãe comprava fiado na mercearia, então também teria de comprar fiado tudo o resto.

Surgiram-me estas reflexões num dia de viagem para Lamego, ao passar no planalto do Mezio e ao vislumbrar de fugida o recinto e a capela da Srª da Ouvida, em Castro Daire.

Uns quilómetros antes de chegar à cidade princesa do Douro Sul, existe essa ermida conhecida nos arredores por, no dia 6 de setembro, se realizar ali uma das feiras de ano mais famosas do planalto do Montemuro. Na Srª da Ouvida juntam-se magotes de romeiros que vêm, de peito aberto e de alma nas mãos, agradecer as graças recebidas por sua intercessão. São favores de um mundo simples, favores de coisas de lavoura, favores de uma troca de uma boa produção de centeio ou de cevada por uma esmola mais avantajada ou por um ex-voto com quase o tamanho de um homem. 

De Cinfães, de Castro Daire, de Resende e mesmo de Lamego, acorrem famílias completas para ali passarem o dia, com uma dose breve de oração, uma dose maior de festa e uma dose gigante de comida. Nas famílias, as mães carregavam à cabeça uma cesta merendeira com um alguidar de arroz do forno e um quarto de borrego assado, que havia de alimentar toda a família de muitas pessoas. Em minha casa também era assim.

Recordo-me de um dia ter topado de frente com um vendedor de brinquedos de madeira e alguns já de plástico. No meio dos carrinhos de empurrar, os fogões de chapa, os pífaros e as trotinetas de pau, brilhava um trator de plástico com atrelado e, imagine-se, um volante. Era pouco maior do que a mão, mas pareceu-me, na altura, um brinquedo gigante, tal era o tamanho do sonho de o ter. Nunca tivera um brinquedo assim, só meu, um brinquedo que não fosse feito em casa com latas de sardinha e rodas de carica. Por isso é que ele parecia o que parecia: o expoente da felicidade. 

Adivinho hoje que as colheitas desse ano deveriam ter corrido a contento dos meus pais, porque, num ato ainda hoje para mim muito estranho, eles nos compraram um brinquedo, a cada um dos filhos mais pequenos. Coube-me um carrinho qualquer, de cores e materiais que se perderam no tempo. Uns saltavam outros gritavam de alegria, mas eu fiquei menos eufórico do que eles. O meu pai perguntou-nos se tínhamos gostado e respondemos que sim. Nunca lho disse, mas deve ter sido uma marca indelével, pois ainda hoje me lembro de que aquilo que eu queria era o trator, o trator de plástico com atrelado e volante!

Antonino Silva


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