terça-feira, 21 de junho de 2022

CONTO EM 1956 - GEORGINA FERRO

 Em 1956

 Numa casa, não muito longe daqui, crepitavam ramos de tojo que poupavam torcida e azeite na candeia. Talvez a pobreza fosse semelhante em quase todas as casas  da aldeia.

  A Maria estava tão consumidinha, que não parava de desfiar as contas do terço entre os dedos. Os filhos estavam com fomita e o calor do lume também não os aconchegava muito,   com aquela chama mortiça que desenhava sombras negras no tabique das paredes.

 O caldo escoado, com um pouco de sal e uma amostrazinha de unto, só estava à espera que chegasse o Zé, para ser deitado no barranhão. 

 Zé, o seu homem chegava da taberna muito depois da reza das Trindades. Não tinha coragem de ver os filhos de pés descalços em tempos tão duros de frio e geada. A lenha escasseava, pois os pinhais andavam bem catados de caruma e galhos. Ele, por mais que corresse a oferecer trabalho de jorna, não havia quem tivesse mais que uns míseros cruzados para lhe poder pagar. A carne na salgadeira, já se comera há muito tempo. As pessoas da aldeia bem gostavam de dividir entre si os poucos haveres que possuíam, mas este ano tinha sido miserável: não houvera água no Verão, as batateiras tinham apanhado bichos e mal-murcho, a castanha perdera-se com as geadas negras de Setembro, as marrãs não engordavam e deixavam morrer os filhotes com falta de leite....

 O Joaquim, o filho mais velho, de oito anos, fizera lindas vassouras de bracejo para juntar as cinzas dos lumes. Ainda não tinha conseguido vendê-las, mas a senhora professora tinha-lhe perguntado por elas e quisera levá-las. De certeza que no dia seguinte lhe traria alguma coisa como pagamento.   Da última vez, lembrou a mãe, a professora trouxera um cabaz cheio de tudo: arroz, bacalhau, massa, açúcar... e até uma enorme lata de atum!

 Ainda não se tinham levantado da mesa quando alguém chamou à porta! Era o Ti Raul.  Os catraios, um a um, pediram a bênção aos pais e foram deitar-se, dois aos pés e dois à cabeceira, no colchão de folhelhos forrado a lençóis de linho ainda a cheirar a sabão e a cora. Não tardaram a adormecer.

 Na cozinha, quase dentro da chaminé,  o Ti Raul tentava convencer o Zé a dar o salto para França: “ Lá, o trabalho é tão ou mais duro que aqui. Arranjo-te trabalho na forja da loiça” “Os ordenados são altos e o franco vale cinco vezes o escudo! Tens é de ir carregar os fornos com temperaturas muito altas, ou cavar barro para amassar.” Também por lá cai muita neve e há frio a gear os caminhos, mas podes encher a barriga aos teus filhos e tirá-los desta miséria!” Sabes que eu sou homem de palavra. Partes de Naves Frias na carreira e eu vou esperar-te a Cidade Rodrigo e acompanho-te no comboio. Vamos entrar por Andorra onde o meu filho tem casa e esperamos lá a oportunidade de passar para França. Depois, já estarás a salvo. Tens de te acomodar numa barraca com outros camaradas até receberes as primeiras “peias”.

 Seria mais um emigrante a partir em busca de pão em terras distantes...

 Georgina Ferro


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