Se há uma coisa que ainda nos faz recuar no tempo, essa coisa é a ida a uma feira, daquelas ainda cheia de casticismo, com ponteados de lembranças de outros tempo. Se nós crescermos e as coisas se mantiverem iguais, a distância faz com que as delícias dessas memórias saibam mais doces, ao mesmo tempo que o sabor original não se perdeu.
Aconteceu-me este verão uma coisa assim. Já há vários anos que não ia à feira de Lamego, uma das maiores feiras da região do Douro Sul, que se realiza, imaculadamente, cada quinta-feira do ano, exceto se coincidir com o Natal ou o Ano Novo. Na avenida ou no largo da feira, ela acontece, porque é um ponto de encontro sem igual, nesta cidade e nos povos da região.
Desta vez percorri o espaço e olhei para a multidão com um olhar mais distante, mais velho – assumo – e talvez mais atento. Mais do que uma vez, passou pela minha mente um Souk de Marraquexe, com a confusão de pessoas e vozes, embora com menos coloridos e menos cheiros. A polifonia cultural, o enxame de vozes e a mistura de interesses despertaram-me uma análise mais sociológica destes locais de encontro. Não sou, curiosa e contraditoriamente, uma alma perdida por feiras; porém, é exatamente esse desamor que me permite falar desapaixonadamente do que mais me marcou nesse dia de agosto.
Ao percorrer o quase meio quilómetro da rua por onde a feira se alarga, encontrei mais gente da minha aldeia do que numa semana de permanência no povo. Vi amigos emigrados, vi colegas de escola, vi mancebos que me acompanharam nas sortes, enfim…vi quem já não via há muito. Por cada passo que se dá, temos de cumprimentar, trocar palavras que são muito mais do que de circunstância, saber novidades, saber de quem nasceu, de quem casou e de quem partiu. Não há jornal que se lhe substitua.
Entretanto, de um lado e outro, debaixo dos toldos que se encontram por cima para fazerem o túnel de sombra que nos protege do estiolar de agosto, ouvem-se pregões que nos levam ao passado. Mais acima, a camionete com duas colunas em alto som debita os êxitos da moda, com alinhamentos de reggaetón nos braços de uma quizomba, enquanto o Quim Barreiros se perfila nos dedos do Dj improvisado. Entretanto, enquanto a música não acaba, o vendedor atende um cliente que tem um Opel Corsa antigo, apenas com leitor de cassetes, e que lhe pede, pelas alminhas, que lhe arranje uma cassete do Marante, porque o tinha visto, em julho, nas festas da Sra. da Saúde, em Moimentinha. De nada vale ao vendedor mostrar-lhe que já não tem tal tecnologia áudio, porque o fã incondicional dos Diapasão não desarma: “Ó santinho, procure lá nas caixas, que alguma coisa há de haver.”
Subimos mais um pouco e percebemos que temos de ter algum sangue frio nas paragens que fazemos. Se o nosso olhar cai nuns sapatos ou numa almotolia, é certo que do lado de lá vem um “Escolha, freguês, veja o que é bom! Como quer o sapatinho? E a almotoliazinha, é para usar ou para enfeite?” E nós, como que apanhados em crime flagrante, lá temos de alinhavar uma esfarrapada resposta “Nada, nada. Estava só a ver…”. Estas trocas sem sentido vão sendo compensadas por muitas outras plenas de sucesso e com compras e vendas pelo preço certo, sem necessidade de tentar acertar se é acima ou abaixo.
E enquanto a manhã vai passando, enquanto o olhar vai zigzagueando e os frangos de churrasco vão assando nas brasas das barracas de comes e bebes, alguns pregões deliciam quem os queira ouvir. É o senhor gordo que, sentado numa cadeira de praia, apregoa as meias a cinco euros dez pares; é a jovem ciganita imaculadamente maquilhada que apregoa sapatilhas da “Ardidas”, enquanto a mãe mostra as ”langeris compradas diretamente da fábrica Triuuuumfooo” e o pai, do outro lado da via, só pede aos fregueses que lhe merquem as varinhas mágicas de marca “Filipes”. Em voz gritada num timbre mais agudo sai lá ao fundo o melhor pregão do dia: “Ó freguesas! venham ver meias-calças da léguins! Há p’ra magras, gordas e entremeadas!”
Se uma pessoa não tem cuidado e juízo, vem de lá carregado de coisas baratas, das quais necessita tanto quanto um careca de um pente. É por isso que vou lá poucas vezes e, sempre que vou, levo mais olhos que ouvidos e dinheiro, mas já decidi que, na próxima, não vou levar é a carteira. Assim, tal como Ulisses, poderei ver tudo e ouvir os cantos das sereias, sem que de lá venha mais pobre.
Novembro de 2023
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