Quando eu era mais jovem, num outro espaço mais próximo do Douro e mais rural, era comum ver na feira de Lamego, e nas romarias da região, uma horda de mendigos e pessoas com deficiências físicas, aos quais chamavam, chãmente, aleijados. Com o título, designavam-se todos aqueles a quem as maleitas de nascença ou causadas pela vida tinham marcado indelevelmente. Mas, o mais desconcertante, é que eu ficava com a impressão estranha de que os aleijões eram males que vinham por bem, pois, onde os via, não faltavam pessoas a darem-lhes moedas, a pagarem um copo ou um prato de comida. Parecia que a deficiência física era uma forma de amealhar recursos e, confesso, chegava a sentir inveja.
Hoje compreendo o quão errado estava e compreendo, também, que, numa altura em que o apoio social do estado era miserável, cabia aos conhecidos, amigos e outros tantos, ajudar quem tinha menos e não conseguia trabalhar como qualquer um.
Porém, havia outras pessoas que conseguiam fazer da diferença uma vantagem. Nas culturas antigas, muitas vezes, uma deficiência era entendida como um sinal divino, uma predestinação para grandes feitos, uma espécie de marca para os eleitos. Cabia a cada um saber tirar o máximo proveito, sem charlatanices nem peditório à caridade alheia.
Era esse o caso do Carriço. Nunca lhe tinham visto um sorriso e de falas era homem de coisa pouca. Quando falava, emitia uns sibilos estranhos, como se estivesse a compor as melodias das palavras com um assobio fino e discreto. Quando ria, mais parecia um trejeito de face sem despegar os lábios e, quando comia em público, ninguém lhe via a cor da língua.
Vivia sozinho, solteiro inveterado, que as mulheres eram, para ele, a causa dos males do mundo. Se, com uma singela maçã, a primeira mulher tinha condenado toda a humanidade, seria preciso muito menos para qualquer moça da freguesia dar cabo da vida de um homem. Assim, era arredio a compromissos e, que se saiba, nunca tinha namorado.
A sua modesta casa – se podemos chamar-lhe assim, a quatro paredes e duas águas de telha várzea – ficava na subida para o Dondelo, na altura já bem fora do povo.
Tinha uma burra que o levava a toda a parte, até à cidade, quando necessário fosse. Mas onde o animal se revelava mais útil era na subida da Quelha, quando o dono, quase sem sentidos pela borracheira construída durante as tardes de domingo, na taberna do Peliqueiro, mal tinha forças para se encavalitar na jumenta, a qual, dócil e rotineiramente o deixava mesmo à porta do casebre e se ia recolher à loja. Esse era, aliás, o único vício que se lhe conhecia. De resto, era honesto e trabalhador, andava ao dia nas quintas da aldeia e quando o inverno pedia pousio e não havia trabalho na lavoura, ia ele até às vinhas do Pinhão, virar valados nas surribas para as vinhas novas.
Como era de poucas palavras, foi granjeando a fama de homem sisudo, com um pouco de adivinho e um pouco de vedor. Muita gente lhe pedia que marcasse poços e minas, com o manuseio magistral da forcada, ou da vara feita de um galho de castanho ou de giesta. Nunca falhara um só que fosse. Às vezes os veios é que corriam mais fundos e obrigavam a um maior trabalho e investimento, mas a água estava sempre lá.
Quando a vida lhe corria bem, no aconchego das mantas ou ao calor da lareira nas noites frias de inverno, ele, então, sorria e até dava gargalhadas, mas sozinho, porque nessa altura ninguém via a falta daqueles dois dentes por onde o ar passava e a fala saía, sibilina.
Os dentes que lhe faltavam eram o segredo da sua sabedoria, se por sabedoria entendermos o comedimento. Não eram os dentes do siso, mas eram os dentes do juízo.
Antonino Silva
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