A VALSA DOS PATINADORES ...
Naquele ano e naquele dia de outono, a Mata Nacional do Choupal foi brindada com as primeiras chuvas. Uma chuva miudinha que fazia subir no ar o cheiro da terra molhada e um aroma mais intenso a eucalipto.
Naquele quarto largo de janelas amplas e paredes brancas, batalhava-se pela vida. A parturiente, cansada, tentava dar à luz a sua criança. Então ele, o pai, preocupado, tomou uma decisão. Subir o Choupal a pé em direção à cidade de Coimbra, na procura de um médico que assistisse ao nascimento de quem teimava em não querer sair do ventre de sua mãe.
A arfar, chegou à cidade. E, por indicações de gente solidária com o drama, bateu ao ferrolho de um médico. O clínico, de cabelo grisalho, ouviu o pedido de socorro. Ficou pensativo, quase relutante em partir. Afinal, naquele fim dos anos quarenta do século passado, a Mata do Choupal era um arrabalde sombrio da cidade. Um talefe nas margens do Mondego e do mundo. Mas decidiu partir, levando ao seu lado num velho Ford, um pai aflito.
Guiando devagar e aos solavancos, evitando as poças de água do caminho de terra batida e de pontes de madeira que eram pulos entre braços do rio, os dois homens chegaram junto ao cais das angústias. A futura mãe ganhou um ânimo novo, ao ver ali uma luz ao fundo do túnel do seu sofrimento. Em mangas de camisa e tendo como ajudante a Maria José, mulher de baixa estatura e rosto trigueiro, mãe de um pai ancioso, o parto difícil teve um fim feliz. Com a criança de pequeno porte de cabeça para baixo e presa pelos pés, o médico deu-lhe um açoite nas nádegas e o menino chorou num vagido sofrido.
Então o médico, de óculos na ponta do nariz, olhou melhor o nascituro débil e escanzelado e teve a frase proscrita - minha senhora, o seu rapaz não presta para nada. Talvez uma forma dilacerante de expressar o seu desagrado, por ter sido quase coagido a deslocar-se àquela casa plantada no coração da Mata nas margens do Mondego. Com o valor dos seus préstimos no bolso, despediu-se numa saudação soturna, rodou o Ford de proa virada para a cidade e, de novo evitando as poças de água, aos solavancos partiu.
Num alguidar com água morna, a Maria José lavou com cuidado e desvelo o seu pequeno neto. Depois, aconchegou-o na cama junto de uma mãe depauperada do esforço de horas heroicas. A criança foi deitando corpo com o leite da vaca que o Vale todos os dias trazia numa pequena vasilha de alumínio, já que o leite materno tinha secado dos seios exauridos daquela mãe-coragem. Batia à porta de mansinho e, de boné na mão num sinal de respeito e cortesia, saudava a Maria José que, junto à lareira, o pequenito enrolado num cobertor no seu berço de madeira - feito na carpintaria da Mata com os materiais recolhidos nas margens do Choupal e oferecido pelos seus trabalhadores - mexia com uma colher de pau o café que borbulhava nas brasa da lareira num aroma enleante e divino. O menino em suave repouso, era filho primogénito da Mata e dos assalariados daquele pulmão de Coimbra, que também o adotavam como seu.
A frase terrível do médico sobre aquele menino, ficou gravada para sempre como um ferro em brasa num coração de mãe. Talvez uma premonição na Ata dos Livros da Vida. Com o amor de mãe, de pai, da Maria José e do José António - o avô, o menino aprendeu a amar a natureza. E a respeitá-la. E a ouvir, de janelas abertas de par em par e na grafonola de cor verde-escuro, a "Valsa dos Patinadores" que invadia a Mata nos seus acordes, uma obra de Émile Waldteufel tão ao gosto do avô José António, que tinha na música entre choupos, plátanos e eucaliptos, a moldura dourada que lhe adoçava a existência de uma imaculada vida.
Kito Pereira (Contos da cidade)
Como te lembras bem desse momento, principalmente do açoite que levaste do Dr ainda não refeito do caminho que teve de percorrer na estrada esburacada dentro do Choupal!!!!
ResponderEliminarPodias parecer enfezado, mas ouvias bem e ainda recordas as palavras simpáticas que sussurrou entristiçado à tua mãe e avó e nem quis pagamento da consulta para ajudar à despesa do funeral!
Mal sabia o João Semana que quem tem uma avó tem tudo...uma avó e os ares saudáveis do choupal e o reforço do leitinho de vaca desenfeçou o bebé e deu o cidadão brilhante e bem parecido como se vê na foto em cima!
Até parece que eu estava lá!…
ResponderEliminarUma história tão bela e bem contada que me recordou também de muitas histórias contadas pela minha mãe que nasceu numa casa que foi transformada na ponte e estacimento de diversas camionetas transportadorascomo a Flix Bus.
ResponderEliminarOs médicos têm a mania que sabem tudo, mas esse não sabia nada. Enganou-se redondamente na avaliação do rapaz!
ResponderEliminarBom dia...que bela estoria contada ao promenor.As avos sabem as maes esperam
ResponderEliminaros pais vao esperando mas o bebe foi um valentao aqui esta ele a contar como veio ao mundo.
Obrigado Quito ja tinha saudades de ler coisas bem escritas continua en frente.
Um abraco.Lucinda
Anónimo?!
EliminarMariazinha Leão.
Os textos é que nunca mais chegam a Fala... cof... cof... cof...
ResponderEliminarQue bela história. Contada por alguém de sensibilidade, como tu Quito Pereia.
ResponderEliminarO Choupal, a maternidade, a vida, porque afinal é sempre da Vida que se fala.
Um grande abraço.
Obrigada
Nome..
Eliminar