quinta-feira, 15 de setembro de 2011

DOIS CAMINHOS ...

Era um homem solitário. Vivia sozinho, num quarto sombrio e acanhado da cidade. Todos os dias subia a calçada a passo, olhos fixos no chão, meditabundo. Por detrás de uma secretária passava os dias, escondido por entre uma pilha de papéis. Apesar do seu modo de ser introvertido, todos os companheiros de trabalho gostavam dele. Aquele sorriso brando, a ligeira vénia com que saudava os colaboradores, granjeavam-lhe simpatia. Engenheiro de profissão, nunca a sua voz se alterou, em acesa discussão com ninguém. Era cordato por natureza. Mas tinha um mistério. Todos os dias – todos os santos dias – depois da hora de encerramento do escritório, fechava-se num compartimento a sete - chaves. Foi assim, durante seis meses. Um dia, confidenciou a um amigo, o que tanto intrigava a todos. Num fim de tarde, convidou o companheiro de trabalho a visitar a sala onde se encerrava até ao cair da noite. E foi ali, que lhe revelou o seu sonho: construir um barco. Em cima de um estirador, repousavam réguas, esquadros, transferidores, compassos, lápis, borrachas e canetas. Além de revistas da especialidade. Debruçado sobre a prancha de madeira, com a ponta do lápis riscando sobre o papel, dava azo à sua imaginação. Depois, regressava ao quarto modesto, onde, pela internet, contactava o mundo. Foi assim que conheceu Regina, brasileira do Estado do Ceará. No início, trocaram apenas palavras de circunstância. Um dia, ela revelou-se-lhe e falou-lhe de amor. Incitava-o a ir ter com ela. Que o receberia de braços abertos e beijos ardentes. E aquele homem introvertido e solitário, via abrirem-se - lhe na vida dois caminhos: ficar na terra Lusa, agora que estava a um passo da reforma, ou viajar para os braços da sua amada. Numa noite mal dormida, teve um impulso: partir, levando na bagagem o desejo ambicionado; o esboço acabado do barco confortável que tinha projectado e queria agora mandar construir. E onde, com ela, passaria a viver, galgando as ondas da extensa costa do Brasil. A vertigem de uma gôndola da paixão e uma cabana. Um delírio de amor. A roçar as seis décadas e meia de vida, moveu influências para passar à reforma. Conseguiu. E um dia, com uma mala na mão, cheia de ilusões e de sonhos, partiu. Mas, rápidamente, aquela ode de desejo se desvaneceu. A Regina, era ainda uma adolescente insegura, muito mais nova que ele. Foi mútuo o desencanto. Pouco ou nada conviveram. Durante muitos meses, vagueou por terras de Vera Cruz. Ao telefone, confidenciava ao amigo que se sentia muito só, não conhecendo ninguém, num país que não era o seu. Voltou. Há dias, encontrei-o numa rua da cidade. Sempre o sorriso afável e cordato. Confidenciou-me, que agora vive num Lugar minúsculo, encravado entre montanhas, no interior de Portugal. Numa singela propriedade que tem, convive com as abelhas, o seu outro amor. De máscara e fumigador na mão, vai tratando dos cortiços e das colmeias, com um olhar vago, perdido de desencanto. A pensar, certamente, na utopia que foi aquele barco de um amor infeliz, que um dia naufragou irremediavelmente e para sempre, ao largo de Copacabana.
Q.P.

16 comentários:

  1. Para além da sedutora escrita que nos agarra sem nos deixar abandoná-la, uma multiplicidade de ideias e situações ela me revela. Semelhantes àquelas que o Quito descreve, mas diferentes, reais ou imaginativas.
    Ler este conto, fez-me lembrar um ferroviário reformado que conheci e que passou três anos da sua vida e gastando as suas economias, a construir um barco no sótão da sua casa. Não de papel. Um barco de verdade no qual projectava navegar nas águas do Castelo do Bode. Esqueceu-se de um pormenor importante que só constatou no dia em que convidou os amigos para a inauguração do seu barco.
    É que o barco só poderia sair do sótão, destelhando a casa...
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    Fez-me reflectir também sobre a volatibilidade dos sonhos, tão comuns agora com a generalização e facilidade das comunicações via internet.
    A desilusão que o conto relata é mais comum do que se pensa.
    Apesar disso, sorte teve ele em estabelecer relação com uma jovem. Pior ainda era se ela fosse velha e feia, que é caso muito mais frequente ...

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  2. Diferente seria o desfecho deste belo conto, se a insegura adolescente não fosse uma simples desconhecida, mas sim alguém por quem o engenheiro se tivesse apaixonado na sua juventude e que, durante longos anos nunca mais vira.

    Também há casos desses...

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  3. Mau grado a desilusão que o feriu, gostava de perceber porque substituiu ele um amor perdido, pelo amor das abelhas que são seres estimáveis, mas muito agressivos...

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  4. Ó Quito, meu amigo!
    Este teu trecho pode dizer-se que é trágico-marítimo!!!!
    Como é que, um triste ser solitário, que durante anos viveu na doce ilusão de construir um barco, pensando talvez com ele desbravar os mares,fugir à sua solidão, conhecer novos mundos...cair na tentadora teia de um amor que lhe prometia beijos e carícias, como ele jamais tivera!!!
    Só pode ter sido a SOLIDÃO com que a vida o brindou e o confiar na exuberância do amor prometido, através da INTERNET!!!!!
    Grande lição amigo, para os que seguem esse caminho!!!
    Pobre deste "solitário", que na sua inocência, perdeu tudo com que sonhou! O grande e possível amor que iria encontrar em terras de Vera Cruz e
    o seu barco que talvez tivesse sido um sonho realizado!!!!!!

    Sensibilizou-me e gostei deste teu texto, só não gostei de ser a primeira a comentar!!!!!
    Beijinho Amigo.

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  5. Esta é uma história verídica. Tenho muita consideração por este meu amigo. Do seu sonho, apenas eu tive conhecimento. Mas fui incapaz de lhe fazer ver aquela utopia. É o sonho que comanda a vida. Sozinho e desiludido regressou.
    Homem culto, domina várias áreas do saber. Para além da apicultura, será talvez dos homens que mais sabem em Portugal de micologia...

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  6. Quito, afinal havia outro....O Rui Felício que se apressou a passar-me à frente, como sempre!!!!
    Não faz mal, não fui a primeira como nunca fui, mas fui a segunda....penso eu!!!!

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  7. Deixa lá, Teresita. O Poulidor também ficou 5 vezes em segundo lugar na Volta à França em bicicleta ...

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  8. Uma história veridica bem contada com todos os ingredientes para prender a atençaõ leitor!
    Gostei como acontece com todos os teus textos!
    Todos os comentários são muito interessantes e realçam bem a excelência do texto!

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  9. Obrigado, Rafa, pela amabilidade do teu comentário.
    Já agora, vê lá se me pagas as ajudas de custo, que ainda não me foi deferido o requerimento para não pagar portagens na A 23 ...

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  10. O relato da desdita do teu amigo engenheiro é reveladora de um espírito inocente e bom.
    A fotografia que colocas a ilustrar é muito feliz, os dois caminhos, na situação de indecisão de qual seguir.Correu mal...

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  11. Até parece que conheço o senhor, de tão bem que o Quito descreve tudo.
    E fez-me recordar o meu padrinho Toneca que se apaixonou por uma prima do Brasil e com ela trocava cartas e fotografias. E essas fotos (que ainda temos guardadas) revelavam, mesmo a preto e branco, uma mulher muito bonita.
    O Toneca conseguiu convencer os pais (meus avós) a pagarem-lhe uma viagem ao Brasil, numa fase em que já se planeava o casório. Regressou passados poucos dias a Portugal, amargurado:
    - Ela tinha uma grande marreca. As fotos que mandou foram sempre tiradas de forma a esconder isso.
    Bem hajas, Quito, por me levares até esta recordação.

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  12. "A vertigem de uma gôndola da paixão e uma cabana", bem poderia ser o título deste conto do Quito.
    Sonho tardio, dá em vertigem...
    Valeu-lhe as abelhas para lhe adocicar o terceiro e último caminho da vida.

    Mais um belo conto, Quito.
    Parabéns.

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  13. Quito envia-me o NIB...para ajudar a cus(t)pear a A23!

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  14. Obrigado aos amigos que sentaram à volta deste texto.
    Permitam-me realçar estes dois apontamentos:
    A perspicácia da Celeste Maria, que, sendo mulher, poderia "crucificar" o protagonista. Na realidade, este é um homem bom, por vezes até a roçar uma certa ingenuidade, agora que há muito passou as seis décadas de vida;
    A história do Tio do Paulo Moura. Uma certa comicidade, naquilo que, se calhar, até foi um drama.
    Um abraço a todos

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  15. Drama foi para os meus avós, que gastaram uma pipa de massa para... o filho ir passear ao Brasil.
    Mas, de facto, o meu padrinho Toneca contava isto com alguma tristeza, mesmo passados tantos anos.

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  16. Quantos de nós não se sentaram a olhar o vazio pensando: "E se ... ?". E nem é preciso um platónico amor em terra distante.

    No tempo que passamos pela Terra por vezes somos enclausurados dentro de uma jaula a que damos o nome pomposo de "vida" e que por vezes nos impede de experimentar tudo o que o mundo tem para nos dar e tudo o que temos para dar ao mundo. Sair dessa jaula é muitas vezes um acto de coragem, neste caso foi um acto também de paixão...

    Gostei do texto paizão!

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