terça-feira, 11 de novembro de 2014

DIÁRIO DE UM SOLITÁRIO





Não lhe pedi que viesse. E parti. Subi o morro das minhas angústias, envolto no frio da minha solidão. Manhã agreste. Uma humidade viscosa, derrama-se pelo alcatrão molhado. De novo, nada nem ninguém. Apenas umas farripas de nuvens baixas, envolvem o carro, como se de uma nave de um Novo Mundo se tratasse. E ela - de novo a Antena Dois – a burilar-me os recantos mais esconsos da alma, neste desassossego da partida.

Aqui e ali, numa tela mil vezes repetida, este ou aquele povoado, semeado no declive dos montes, como que em equilíbrio instável. 

Vou olhando, por entre a cortina de chuva miudinha, os telhados do casario imóvel, ancorado no Tempo. Em comum, em todos aqueles aglomerados dispersos, a torre da pequena igreja, refúgio de Crentes e daqueles que, abrigados na sombra da Proteção Divina, encontram nos caminhos do Etéreo, a força interior para a romagem terrestre, toda ela coberta de sombras, espinhos, obstáculos, desgostos e canseiras.

Corro devagar. Pela minha mente, passa um turbilhão de pensamentos. Nestes quilómetros, poucos são os que se aventuram a acompanhar-me nesta via – sacra. De longe em longe, sou ultrapassado por um carro mais apressado. Aparece e desaparece como que por encanto, nesta correria da vida.

Os seus faróis vermelhos da retaguarda, que assinalam a sua presença, diluem-se no nevoeiro agora mais cerrado, dando àquele cenário rodoviário um aspeto patético, de quem foi, como que por magia na manhã cinzenta e escura, tragado pelas catacumbas do Purgatório.

Ali, naquela descida acentuada, vou precavido. Eles, os jornais, percorrem todos os caminhos da vida frenética. Aqui e além - fronteiras. São também uma espécie de arautos da desgraça, quando cheira a tragédias e a sangue fresco. Por isso vou tenso, naquela estrada que é uma ratoeira mortal.

Ontem, duas pessoas ali puseram ponto final nos seus dias, num embate frontal e inexplicável, naquela longa reta. As travagens e um rail torcido de um impacto, lá estavam, a selar aquele pacto de morte.

Tento arredar o mau presságio, como quem atira pela janela fora, um tição que nos queima e derrete as entranhas.

O casario da urbe albicastrense, já se avista, por entre uma névoa persistente. Tudo me parece fantasmagórico, agora que a cidade vai deslizando sobre a tela da minha retina. 

De novo os campos empapados de água. De novo os anciãos, pacientemente sentados nas suas carroças e os animais de doce olhar e orelha desperta, a caminho das courelas.

Estranho e misterioso mundo este, quando uma nave não tripulada, já vai dando os primeiros passos titubeantes, no universo pedregoso de Marte.

É nesta terra árida de gente, de montanhas mudas e de palavras transviadas, que viro mais uma página de um livro turvo de pensamentos, de desencantos e de solidão.
Quito Pereira             

28 comentários:

  1. Ó Quito, isso não é uma viagem, é um martírio!...
    Domingo lá nos encontraremos!!!... Esquece a solidão, que a Celeste leva bolo...

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  2. Por acaso...
    Ó Quito, tu andas a precisar de uma barrela... com ouriços de castanhas...

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  3. Tanta nostalgia trespassa neste rol de palavras solitárias, doídas, pesadas, recheadas de fantasmas!
    Desabafa Quito, os amigos servem-nos também para nos ouvirem e darem um colinho na hora em que os pensamentos nos traem, a mente teima em nos afundar. Quem nunca sentiu este sufoco?
    Mas, sim há sempre o mas, os minutos, as horas, os dias não se compadecem com fracassos e preocupações que fantasiamos.
    Eu desconfio... o netinho Miguel está a provocar ansiedade, é natural. Quase a chegar o "seu natal" que trará uma alegria e uma emoção única neste ano de 2014!
    Desejo tuuuuuuuuuuuuuuuudo de bom e a alegria levar-te-há... às lágrimas.
    Abraço e, como diz o Alfredo, vem comer bolo connosco e beber uma taça em nome da nossa amizade.

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  4. Tenham calma ! Por vezes, é preciso soltar as manifestações do espírito, como quem solta um canídeo da trela. A manhã chuvosa, inclemente e grossa, que hoje de manhã quase me fez parar junto ao "Tabuínhas", foi pretexto para falar com aqueles que vão tendo a paciência de dialogar comigo. O longe se faz perto. Domingo, aí estarei, caso não haja qualquer imprevisto. Sei que vou ter à minha espera, aquilo a que eu dou o nome de "Bolo da Amizade". Será sempre um bom bolo, até pelo significado que encerra. Mas o será também em qualidade, pois a doceira tem fama e proveito. Agradeço as vossas palavras e mobilização, quando acharam que algo estava mal, atrás destas montanhas. Mas não.Até umas castanhas bem quentinhas, marchavam !A vida prossegue devagar. Por vezes, as palavras são simples e acolhedoras, mas grandes como as montanhas do Nepal.
    Obrigado.

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    1. Quanto ao bolo vais poder comer o meu quinhão...

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    2. Pois como ! É para me vingar dos carapaus que me papaste na Nazaré !!!

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    3. Ó Quito, o Dom Rafa comeu-te os carapaus porque sendo tu tão esquisito à mesa, gostasses de uma comida tão pobre!...
      E não nigues, deixa ná que ene agora até te dá o quinhão dele...

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  5. Uma catársis psicanalítica ao volante de um automóvel mas que poderia ter sido no divã de um psicanalista ( neste caso, todos o fomos...).Essa caminhada semanalmente faz-te bem ou faz-te mal?( "a vestir a pele" do Prof Elyseo de Moura mas da consulta dele virias a contar histórias engraçadissimas daquelas que a São Rosas gosta....) Ai os euromilhões!!!!
    Para lá cismático te acho mas para cá felizardo....Ah, caraças está quase a vinda definitiva e nós queremos-te cá.....Aí 2 anitos passam num instante acredita porque a passagem do tempo não se compadece connosco!!!!

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  6. O texto saiu torcido....Os 2 últimos períodos seguem-se a (.......) Depois está correcto. Termina nos euromilhões....
    Fosca-se tenho de ir ao psicanalista...
    De facto, isto é uma espécie de blog!

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  7. Tens cá uma "solidez" na solidão!
    Bem faz o Paulo Moura que em vez de ler Séneca...dorme uma soneca! É fácil trocas o e pelo o!
    Sabes de quem é esta citação?

    "As coisas que nos assustam são em maior número do que as que efectivamente fazem mal, e afligimo-nos mais pelas aparências do que pelos factos reais."

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    1. Andas cá com uma filosofia !!!!

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    2. Quem te disse, Rafaelito, que o Séneca não podia escrever destas coisas e dormir a sesta?!

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    3. porque há um ditado que diz:
      "quem muito dorme, pouco aprende"....

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    4. E não sabes que, para cada ditado popular num dado sentido, tens sempre outro que diz o contrário?
      "Dormir é meia mantença"
      "O dormir é meio sustento"
      "Dormirei, boas novas acharei"
      "Arranja boa fama e deita-te a dormir"
      "Quem não pode dormir, acha a cama malfeita" (TOMAAAAAA!)
      "A abundância não deixa dormir o rico" (CHUPAAAAAAAAA!)

      Queres mais?

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    5. Fia-te na virgem e não corras...

      Dás-te bem com "sesta"!?

      Albarda-se o burro à vontade do dono

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    6. Olha, como se diz na minha terra:

      E vai daí òsdespois quem matou o cão foi o Baetas!

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  8. O Quito com a sua amiga inseparável que se dá pelo nome de Antena Dois pois não liga nenhuma à São Rosas, não nos deixa de falar na humidade viscosa para nos projectar a sua solidão. Depois fala-nos de uma realidade bem da nossa terra, que são as casas construídas na encostas das montanhas, da crença dessas pessoas e da dureza das suas vidas. Expõe-nos os problenmas da condução e os resultado nefastos que são transmitidos pelos médias, mesmo uma fatalidade. Depois vagueia com uma ida de uma nave a Marte e quando volta à cidade que tanto ama, vira "mais uma página de um livro turvo de pensamentos, de desencantos e de solidão". Não vires Quito, aproveita e faz um livro de todos os teus textos. Tenho aqui vários de Gentes de Coimbra, incluindo o que é tão falado neste blogue, Curado. Publica que eu compro-o logo, pois tinha com que me deleitar.
    Abraço.

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    1. Ó "stôr" ginecologista! Eu fiz de conta que não vi ali a referência mais que malandreca do Quito à "humidade viscosa"... e o Chico ainda me associa a este conceito do demo?! Aqui há dois pesos e duas medidas?! E a tarada sou eu?!

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    2. Eu de humidades, só sei que me constipei por causa da humidade que apanhei nos pés...e ainda ando rouco! Mas cantei na Música Activa, até que a garganta aguentou!!!Salvou-me o lavacolhos!
      Mas sempre te digo minha flor de cardos...és uma taradona!!!!
      AH e o Quito só percebe das humidades do parabrisas no carro quando vai de manhã para exilio doirado...que nasce no campo sem ser semeado!

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    3. Rafael, areia quente nos pés tira toda a humidade. Não há constipação que resista.
      Boa noite deste fuso.

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  9. "Subi o morro das minhas angústias"...
    "envolto no frio da minha solidão"...
    "manhã agreste"...
    "uma humidade viscosa, derrama-se pelo alcatrão molhado"...
    " nada nem ninguém. Apenas umas farripas de nuvens baixas"...
    "e ela a burilar-me os recantos mais esconsos da alma"...
    "neste desassossego da partida"....

    Tudo este desespero é vertido logo, somente e apenas, no primeiro parágrafo, criando à sua volta um quadro que de forma circunstancial quase nos aponta para o abismo...para as profundezas do inferno e cria, assim, com este despudor, um desespero desesperado de um homem solitário com a tragédia grega em pano de fundo.
    Para, logo de seguida, a abrir o seu comentário, nos aconselhar,de sorriso aberto, que tenhamos calma! Que por vezes é preciso "soltar as manifestações do espírito, como quem solta um canídeo da trela"
    Só lhe falta mandar-nos correr atrás do canídeo, agarrar o animal e acarinhá-lo ...
    Granda Quito!

    Numa coisa estás cheio de razão, o ginecologista anda armado em filósofo. Não é para admirar, com colaboradores como tu...
    Aquele abraço.

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  10. .Compreendo bem o que escreve...
    mas toma lá mais uma do Soneca...
    O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário.!

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  11. Agora aqui chegado, agradeço as palavras dos amigos com quem ainda não dialoguei: Torreira da Silva e Carlos Viana. Também as vossa reflexões, me deixam a pensar. Sobretudo, porque não leram o texto na diagonal, e interiorizaram aquele meu momentâneo solitário. Uma leitura atenta e escalpelizada, muito bem redigida por ambos, no meu entender, o que demonstra, em última análise, este respeito recíproco, entre autor e leitor. Muitos vos agradeço, como de resto já agradeci a todos quantos o quiseram igualmente fazer.
    Um abraço a todos

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    1. Quito, após te ler, lá no "Chama a Mamãe", agora entendo essas "viagens". Guardadas as proporções, o meu "viajar" diário tem um pouco do teu. Para não desviar a atenção da direção, claro, quase não posso vislumbrar o cenário que se apresenta, todos os dias, à minha volta. E, como tu, vejo carros que me ultrapassam, velozes... Às vezes rio, sozinha, porque ao me ultrapassarem, numa rodovia não bem compactada, me parece estarem a 120km/h. Quase voam sobre o meu carro, caso eu não saia da frente. Rio, porque alguns desses carros têm frases escritas no vidro traseiro do veículo, como "Dirigido por mim, guiado por Deus", e aí fico pensando, naquele momento: "Pô, imagine se fosse guiado pelo Coisa Ruim!" rsss
      Em outros, "Propriedade de Jesus", mas o veículo está caindo aos pedaços (nem sei como a fiscalização não impede de circular, podendo causar algum acidente ao condutor e a terceiros). Então, concluo, sorrindo, nas minhas elucubrações, que se a frota de Jesus está daquele jeito, sucateada, imagine a do Estado!, ou, ainda, que a coisa deve estar difícil até lá em cima. E aí vou chegando ao destino. Mas "enxergo", tal como tu, tudo à volta.

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