O João é o Senhor João – um tratamento cerimonioso. Podia não
ser assim, dos anos que nos conhecemos e das vezes sem conta que entro na sua papelaria
que vende jornais mais honestos que outros, revistas de vidas cor – de - rosa e
outras mentiras pardas. E o João – o Senhor João – lá está atrás do balcão, na
sua estatura mediana, uns calções pelo joelho que o tempo ainda parece de
lazer. No rosto, uma viseira transparente que não lhe esconde a calvice, na
tentativa de se resguardar de um vírus que dizem que é chinês. Em cima do
balcão, uma enorme garrafa de um liquido azul que serve para desinfetar as mãos
e que quase dá para o cliente tomar banho de imersão. Mas o João – o Senhor
João - não facilita. Lá me vai dizendo que nunca foi muito saudável e que já
esteve três longos meses internado num hospital deste barlavento algarvio.
Agora, recuperado das maleitas, dobra-se vagarosamente sobre balcão e com a
ponta da esferográfica vai anotando todos os jornais e revistas que uma
carrinha apressada lhe atira para dentro da loja, atados em molho com uma
guita. Tudo feito sem pressas, mesmo que o cliente enfadado espere a vez de
pagar o seu jornal favorito. Assiste razão ao João – o Senhor João – que tem
que conferir a mercadoria com minúcia, que a margem de lucro é muito estreita.
Para mais, a idade já não lhe permite grandes correrias. Por vezes, naquela
lojinha de bairro, assiste-se ao render da guarda. A Filipa, filha do João – o
Senhor João – rende o pai ao balcão no atendimento dos clientes – poucos – que
entram. É afável e eficiente. Ao contrário da grande parte dos algarvios, é
reservada e fala pouco ou nada. Mas cordata e simpática se interrogada deste ou
aquele artigo que tem numa prateleira. Tal como o pai, não é de grandes
discursos e nem sequer dá para trocar impressões deste descalabro social que se
pressente. De manhã, todas as santas manhãs, o João - o Senhor João - abre o
seu estabelecimento, na esperança das moedas que tilintem na gaveta da sua
caixa registadora. Por mim, e enquanto por aqui estiver, ajudá-lo-ei a
sobreviver, sendo sempre generoso nas minhas compras matinais. Mesmo num
diálogo de silêncios que mantemos há tantos anos, temos uma empatia mútua. E um
dia, quando o João – o Senhor João – depuser as armas e gozar a merecida
reforma, a sua única filha e herdeira lá estará, para todos os dias rodar a
chave na fechadura de uma loja que vende notícias verdadeiras ou falsas, coloridos
livros infantis, esferográficas, tubos de cola e ilusões.
Que assim seja.
Kito Pereira
Cidade Lagos, 9 de Outubro de 2020
Não conheço o João- o Sr. João - mas essa Loja de Jornais fez-me lembrar a Tabacaria Celeste gerida pela D.Rosa.
ResponderEliminarOutros tempos em que não havia uma pandemia como esta que destroça a esperança e a alegria de viver.
Naquele tempo, a D.Rosa ciente dos magros tostões que tilintavam nos bolsos da rapaziada, permitia-lhes que dessem uma vista de olhos aos jornais que traziam a ultima proeza dos pardalitos do Choupal frente aos colossos do futebol nacional.
Sentados na esplanada do Silva iam devorando as noticias devolvendo depois à D.Rosa o periódico que ela tinha emprestado.
Eram realmente outros tempos.
Em que a juventude tinha uma vida pela frente e a esperança da concretização de sonhos.
Essa mesma juventude que não imaginava que no dealbar das suas vidas lhe seria coartada a esperança que é a razão da existência.
Um abraço Quito
Quando escrevi este texto, com a intenção de o oferecer ao Fernando Rafael para o seu blog, era incontornável não recordar a Tabacaria Celeste da Dona Rosa e do Senhor Ferreira. Aquele espaço na zona comercial do Bairro, é hoje um armazém de memórias. De memórias para os mais antigos, que tiveram a felicidade de viver num Bairro menos impessoal, mais fraterno, mais próximo com o próximo. Tabacaria Celeste, talho do Aires, mercearia do Alípio, o café do Silva, a barbearia Simões, foram bastiões de um Tempo. Eramos jovens. Jovens cheios de ilusões e irreverência. Um jornal é sempre um passaporte para o mundo. E ali, enquanto o Silva "comia" a "dama" do antagonista, nós liamos o jornal que a Dona Rosa na sua bonomia consentia. Agora tudo morreu. Resta-nos a memória dos dias ternos.
EliminarUm abraço, Rui ...
Boa tarde. Não sei se ainda venho a tempo, mas há pelo menos duas lojas do Bairro que não vi aqui recordadas: uma, a do Sr. Dias, uma mercearia, logo ao principio da Rua Daniel de Matos, onde agora é uma tabacaria, e onde eu me lembro de ir comprar mercearias a granel, já há bem mais de 40 anos. Outra, uma retrosaria, a meio da mesma rua, onde ia comprar botões e linhas para a minha mãe. Alguém se lembra? Obrigado.
EliminarAntónio
Ora vejam como era a loja dos jornais em tempos idos no Bairro!!!
ResponderEliminarTABACARIA CELESTE!!!!
Pois a Dona Rosa da Tabacaria Celeste começou na rua Mousinho da Silveira, ao tempo rua J, que dava para o Cavalo Selvagem, entre o talho do Cristo e a Mercearia do sr Manel.
Era um vão de escada que dava acesso através de uma longa escada para os inquilinos Senhor Carramona/Dona Piedade que tinham dus filhas:a Rosinha e a Celeste, e mais acima a familia do senhor Graciano/Dona Rosário com os filhos Graciana,Elói e Jorge.
Foi a primeira biblioteca pública do Bairro!!!
As escadas enchiam-se principalmente da malta jovem a ler desportivos e revistas!!!
Por vezes ouvia-se a Dona Rosa em voz alta dizer: Carlitos deixa ver a Bola que está aqui o freguês dela!
Teixeira deixa ver o Tintim que está aqui quem o mandou guardar.ETC,ETC
Depois passados anos a Tabacaria mudou-se para a Rua Vasco da Gama e os fregueses de escada também....
O Quito e Lagos é sempre um manancial de episódios com os seus velhos conhecidos desta cidade.
Sempre tempo para bons conhecimentos, pois não gostava de molhar os pés...
Em cima ler Graciano
EliminarMudaste a fotografia e mudaste bem. Obrigado...
ResponderEliminarQue maravilha de momento... e que bela foto!
ResponderEliminarBem hajam, Amigos!
Olha, o Paulito de Caria também veio aqui espreitar. Fizeste bem e toma lá um abraço ...
EliminarEle vem aqui sempre, Kitito. Ele e eu. Este blog são as nossas escadas da tabacaria Celeste.
EliminarOlha como era a jovem que ia buscar os jornais à Estação Nova,a pé pela Estrada da Beira ou pela linha do comboio,pois o lucro dos jornais não dava para o elétrico.
EliminarRegressada à loja ia entregar a casa de alguns clientes.
E assim procedia duas vezes por dia ,de manhã eram os que vinham do Porto e à tarde os que vinham de Lisboa.
Mas sorridente junto do mostruário!
Caminheira,por força das circunstâncias.
Obrigada Quito por remexer nestas recordações através do Sr. João.
Caminheira mai'linda!
EliminarObrigado Celeste por esta partilha de vida. Era sacrifício? Era. Mas havia algo de acolhedor e romântico naquele caminhar pela vida e pelos dias.
EliminarAbraço
Celeste...És tu? Agora entendi a paixão do Dom...por ti. Linda!
EliminarSim,amiga Chama a mamãe,com os meus 15 anos!
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