terça-feira, 27 de outubro de 2020

GENTE DA MINHA VIDA Georgina Ferro

Gente da minha vida



      Em cada dia que passava, mais cedo se notava o sono do sol, que se deitava no céu de arrebol prometendo voltar no dia seguinte.

     A Maria levantara-se ao primeiro toque do despertador que, à mesinha de cabeceira, diariamente marcava as cinco e meia. Acendeu o candeeiro de petróleo e foi até à cozinha ligar o fogão para aquecer a água e terminar de cozinhar a sopa de tomate que o seu homem iria comer mal se levantasse. Voltou ao quarto a vestir-se. Pôs na tampa da arca a roupa para as filhas levarem para a escola, e as batinhas brancas nas costas duma cadeira. Depois, acordou o marido e, enquanto ele se arranjava para ir trabalhar, voltou à cozinha, pôs a sopa na mesa, já prontinha e a fumegar, preparou o tarro com o feijão guisado, um troço de toucinho, uma rodela de linguiça e um pedacinho de farinheira. Na lancheira pôs, também, um talher enrolado num paninho/guardanapo, uma garrafinha com um golo de vinho e o canivete. Tudo pronto! O marido poderia vir de seguida. Então, foi arranjar a mesa para a sua Adelina e Inês. Elas já saberiam arranjar-se sozinhas quando acordassem. Já se tinham habituado a ficarem as duas sozinhas e olhavam uma pela outra, embora tivessem seis e oito anos, apenas.

     Maria meteu qualquer coisa na boca, enquanto rodopiava de um lado para outro. Despediu-se do marido, com o coração apertado ao vê-lo  abalar para a pedreira de bicicleta a pedais,  pois,  para além de ter de percorrer um bom punhado de quilómetros, havia por lá  tantos acidentes!

 Na freguesia já não chegavam os dedos das mãos para contar os estropiados em trabalho.

     Volveu a casa e arrumou a loiça, preparou um pequeno farnel para levar para o campo, chamou as filhas deu-lhes um beijo e fez-lhes as recomendações de sempre. Saiu.

As pequeninas depressa fizeram o mesmo, tentando lembrar todos os conselhos da mãe: lavarem bem a carinha e as mãos, guardarem as tigelinhas do pequeno almoço no alguidar, deixarem a mesa limpa, fechar  bem a porta...

     Voltaram todos ao entardecer. As pequerruchas foram à fonte com a mãe, carregando cada uma a sua cantarinha. A Maria trazia um cântaro à cabeça e uma bilha de plástico  numa das mãos que ia mudando de vez em quando ao longo do caminho.

     Antes  de começar a fazer a ceia, as crianças foram fazer os trabalhos de escola e a Maria encheu uma bacia com água morna e pô-la na rua. O Joaquim, seu marido, mergulhou os pés enquanto ela se ajoelhava à sua frente para lhos secar numa toalha e lhe cortar as unhas.  Foi nesse momento que eu passei ali. Achei a cena tão penosa para aquela mulher, que não parava um minuto ao longo do dia a trabalhar para o bem de todos, e agora ali estava prostrada frente ao marido...        

Só com o passar do tempo me apercebi que aquela não era uma atitude de humilhação, mas sim do muito amor com que todos se amavam...

Georgina Ferro


Sem comentários:

Enviar um comentário