quarta-feira, 19 de maio de 2021

ONDE NÃO SE FAZ MOLHO, NAO SE ESTENDE VENCILHO

 Onde não se faz molho, não se estende vencilho.

A recorrência dos temas, ou melhor, a recorrência de alguns tópicos de abordagem similares quando falamos de temas distintos, é uma forma grata de construção do discurso. Não se trata de preguiça nem de cópia cediça ou requentada, retocada aqui e ali para dar um ar de novo; trata-se, isso sim, de um exercício de coerência, da edificação de pedras angulares daquilo que somos enquanto pessoas que comunicam. Refundir e usar as coisas é uma forma de criar o caráter e todo o crescimento parte do que já existe; nada se cria do nada.

Com esta ideia, gostaria de voltar a falar da importância que algumas personagens têm na nossa vida, porque nos ensinam e nos dão o motivo de escrever. É um pouco esquisito quando as personagens que construímos são quem nos ensinou o que sabemos. Fica sempre aquela sensação de que não lhes estamos a fazer a justiça devida quando falamos delas e as tornamos protagonistas das nossas histórias. Elas são os nossos professores e nós, os supostos criadores, somos os seus alunos, pois ficção e realidade andam, neste caso de mãos dadas. Os nossos familiares e vizinhos mais velhos são os nossos mestres, porque nos ensinam, e quando falamos deles, seja porque já partiram, seja porque não estamos cercanos, tornamo-los em personagens das nossas histórias e são, por isso, figuras de ficção. 

A este propósito, assaltam-me a lembrança algumas conversas com metáforas de sabedoria em que ele, andando com o filho a apegar batatas –  isto é, a realizar a primeira rega a pé das batatas, em que o terreno teria de ser todo ele nivelado à força de sachola para que a água chegasse a todos os pés de toda a torna – ensinava cantigas antigas e se saía com alguns aforismos de sabedoria popular. Na altura, parecia ao jovem que algumas das frases não faziam sentido, até porque ele já estudava na cidade, no 12º ano, e o pai só tinha a 4ª classe.  No meio daqueles almanaques de ensinamentos usou uma frase com, supostamente, uma moralidade implícita: “onde não se quer fazer molho, não se estende vencilho”. Para o jovem, todas as palavras faziam sentido, mas a frase não. Era claro que onde não se vai fazer o molho não se coloca o vime ou as cordas que serviriam de vencilho – ou vincelho – e por isso a frase não representava nada mais do que isso. Contudo, as palavras ditas a seguir foram a pedra de roseta daquilo que tinha dito: “Agora que começaste a namorar, vê lá como te portas!”

Afinal, a forma lúdica de pedagogia tinha agora assumido uma conversa de homens, muito para além de uma transmissão de ensinamentos gerais. Havia ética e moral no que dizia, havia a pedagogia dos valores que fazem caminhar com a coluna direita. Admirava-se o jovem por o pai já saber do namorico que tinha começado há pouco, – geralmente são as mães quem primeiro se apercebe disso e os pais fingem não saber – mas percebia perfeitamente o que ele queria dizer. Por isso, no domingo, depois da missa e enquanto a acompanhava a casa, ao subir a costa do cemitério, decidiu que era por ali que queria estender o vencilho e fazer com ela o feixe da sua vida. 

...e continuamos casados.

Professor Antonino Silva


Sem comentários:

Enviar um comentário