domingo, 18 de julho de 2021

APANHAR NO COIRO E FICAR POR CIMA...Texto do Professor Antonino Silva


Apanhar no coiro e ficar por cima.


Nem sempre quem porfia mata caça. Muitas pessoas fazem tudo o que podem por uma vontade ou o cumprimento de um desejo e não conseguem. No lado contrário, temos as vitórias conseguidas com baixo esforço. Não é por isso que são menos ditosas e menos felizes, como é o caso desta história de que me lembro.

Estávamos então naquele intervalo entre a implantação da República e a presidência majestática de Sidónio Pais. Era uma década que se preparava para tudo, até para uma guerra que viria a devastar a Europa e a mostrar ao resto do mundo que, afinal, os europeus também sabiam ser inclementes na selvajaria e que o eurocentrismo era uma balela alimentada por quem a proclamava. Parecia impossível que um continente que se proclamava civilizador dos outros povos, raças e nações se portasse agora pior que os mais bárbaros cafres e ‘selvagens’ chefes tribais. 

Por cá, enquanto a guerra não vinha, a testosterona dos mancebos era posta à prova em vários episódios que envolviam orgulhos coletivos, como eram o caso das escaramuças nos bailes das aldeias ao som das filarmónicas. Então, entre os rapazes de Magustim e os de Maçãs era tiro e queda: não havia baile em que a zaragata não fosse chamada por causa de brios ofendidos, de uma piscadela de olho à catraia comprometida ou de um encontrão intencional nos rodopios da dança. Armava-se logo grande burburinho e nem as famílias escapavam.

Na festa da Sra. da Guia voltou a acontecer o mesmo. O dia tinha corrido bem da parte da manhã, durante a missa campal celebrada pelo Cónego Baptista. A espiritualidade do local e da festa da padroeira foi bafejando a paz até ao fim da procissão. À hora do almoço, comido à volta de um eucalipto no recinto da festa, o Gaspar empachou arroz do forno com capão, um dos pratos que mais apreciava nestes dias. Preferia o naco do peito, “por causa da rilha”, dizia, enquanto levava o garrafão aos beiços. Noutra roda, a família do Sacristão valia-se de um coelho estufado, comido com pão e regado, também, a goles vertidos do gargalo do vasilhame de cinco litros.  De um e outro lado, a sede era já pouca quando começou o baile. 

O rastilho para a confusão estava lá: um era de Magustim e o outro de Maçãs e ambos andavam perdidos pela Conceição Bela. Ela, por causa das coisas e prevendo o desarranjo que se podia gerar, disse que não a um e a outro, quando foi solicitada para a dança. 

Sem tentarem perceber os motivos, cada um deles atribuía a culpa da nega ao outro e pegaram-se de razões. As famílias e os conterrâneos não se puseram de parte, de tal forma que tudo se transformou num arraial de porrada sem conto. Os praças da recém criada GNR viam os quepes e voar e tiveram de fazer uso de bastonadas dadas generosamente a quem estava no raio de ação do braço. As crianças refugiavam-se nas saias das mães e o tesoureiro da irmandade mandou recolher a mesa com as doações e os pagamentos dos anuais, não fosse o diabo tecê-las.

O Gaspar e o Sacristão, no meio disto tudo, viram-se frente a frente, um de varapau em riste e outro com um pequeno revólver escondido no bolso do casaco. Foi num repente que tudo aconteceu: o Gaspar deixa cair a vara repetidamente nas costas do outro, enquanto este, disfarçadamente, dispara de dentro do bolso, acertando na mão que o Gaspar tinha no ar.

As autoridades conseguiram pôr ordem na festa e acalmaram os ânimos; o Reitor da capela e os membros da mesa fizeram das suas palavras uma tal sermonária que todos se sentiram envergonhados e a paz reinou. “Siga o baile!” -  Disse o juiz da festa.  

Assim foi, mas alguém ficou a remoer: um e outro esbaforiam a prosápia da vitória perante o grupo dos amigos. O Gaspar, porque tinha dado duas valentes arrochadas no rival, muito bem assentes, como pedra em muro, apesar da mão a sangrar. Estavam dadas, estavam dadas; não as queria de volta. De certeza que os vergões do varapau deveriam ter feito mossa nos costados do outro. Tinha-o ouvido impar à primeira e à segunda. O Sacristão gabava-se, porque vazara a mão ao concorrente, mau grado as bordoadas que tinha apanhado. Sentia um desarranjo por dentro, mas de certeza que a mão do Gaspar não teria melhor conserto. Talvez nem na quinta-feira, quando fosse a Lamego ao Paula, ao compõe ossos, conseguisse recuperar toda a agilidade de antes. Ambos derreados, mas ambos cheios de vista, como um pavão.

Entretanto, a Conceição Bela passeava de mão dada com o Arnaldo, o meu avô, que não tinha nada a ver com a história.

Antonino Silva

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