CADA UM É PARA O QUE
NASCE …
Foi num dia de primavera que o conheci. Todos os dias, quase
todos os dias, ele descia a estrada em grande velocidade, fazendo alarde de uma
técnica de dominar uma bicicleta de competição que não estava ao alcance de um qualquer
leigo. Vistoso no seu fato de licra azul, uma fita na cabeça que lhe prendia o
cabelo longo e óculos de competição , curvava inclinado para a direita quase
roçando o chão, com fé talvez no Divino e na sua bicicleta italiana Campanollo
de dupla roda pedaleira e muitas desmultiplicações. Um dia parou junto daquela
curva e apresentou – se – me. Disse o que eu já desconfiava. Que era ciclista
profissional da equipa Sicasal, com mais de uma dezena de voltas a Portugal e
um título de campeão nacional de estrada em 1993. Acrescentou que vivia em
Almaceda, que dali distava mais de uma vintena de quilómetros, uma aldeia
encravada entre montanhas. E foi assim que conheci o Raúl Matias.
O Camilo era emigrante e repórter de guerra de uma cadeia de
televisão francesa. Um dia chegou junto de mim enquanto eu olhava a Serra do
Moradal, e desatou num monólogo das suas façanhas de jornalista entre tiros e
canhões , fugas precipitadas e dedos gelados do frio. Depois falou-me da mulher
dos seus sonhos, que era um anjo que lhe aturava a sua faceta destemida de
máquina de filmar em punho e bloco de notas a cair do bolso de trás das calças
lá pelas bandas do leste europeu. Deu-me então uma forte palmada nas costas,
para me afirmar que eu estava mais novo, como se alguma vez já nos tivéssemos
visto. Tinha tanto de gabarola como de bom rapaz.
Naquela tarde de verão, o Camilo apareceu junto do meu
escritório com vista para a Serra da Raposa, montado num bicicleta velha
vulgarmente conhecida por “pasteleira”. Calções e uma camisola fresca eram a
sua indumentária desportiva naquela tarde quente. No café da curva, bebemos uma
cerveja. Foi então que a toda a brida apareceu o Raúl Matias. Ao ver – nos
travou a fundo, encostou a bicicleta a um plátano e lá veio mais uma rodada de
cerveja com tremoços. O Camilo naquele seu jeito de dizer pouco e falar muito,
perguntou ao Raúl se ele andava treinar. E o Matias, descontraído enquanto
chegavam à mesa mais uns pacotes de amendoins, disse - lhe que não. Só tinha
vindo dar um pequeno passeio. Refrescados, o
Camilo dispôs-se a acompanhar o Matias. O Camilo com o seu rabo gordo e a cabeça
derramada sobre o guiador da “pasteleira”. E o Raúl de máquina Campanollo de
competição e fato de licra. E lá
partiram ambos estrada abaixo. Fiquei sentado à sombra da árvore e o tempo foi
passando. Por fim, comecei a ficar inquieto. O Camilo nunca mais voltava, já
que do Raúl eu não me preocupava pois aquela era a estrada para a sua terra –
natal. Então, não resisti e meti-me no carro na busca de ambos. E foi ali junto
ao Pontão da Ribeira do Chão da Vã seca como as palhas por ausência de água
naquele tempo tórrido, que fui dar com o Camilo sentado no chão encostado a um
sinal de trânsito, todo transpirado da suas bochechas gordas e rosadas, a arfar
de cansaço, enquanto com o nervoso miudinho ia mordiscando a raiz de uma planta
daninha para me dizer de maus modos_
- Olha, se o gajo diz que anda só a passear que vá correr
para a terra da avó dele !!!
E derrotado por uma aventura breve que apenas tinha durado escassos
cinco quilómetros com os pulmões em brasa, lá ficou a arranjar forças para
regressar à desejada esplanada de onde tinham partido para apagar o fogo nas
entranhas com mais umas cervejas. E eu de carro voltei tranquilo e a meditar
que provavelmente nem o Camilo dava para ciclista profissional, nem o Matias
com o seu ar cordato e tranquilo dava para repórter de guerra …
Realmente, cada um é para o que nasce …
Kito Pereira
Mais uma recordação de um episódio com amigos
ResponderEliminardos muitos que tiveste nos prolongados anos que passaram lá pelo Moradal....