PROSA DE GUERRA …
Regressou a chuva. Uma dádiva dos céus intensamente reclamada
por quem vive da lavoura. Aqui, neste lugar, sinto-me confortável no meu
pequeno escritório, enquanto a água em
manso regato, vai caindo num fio transparente e contínuo da beirada dos telhados.
Lá fora, como se fosse nevoeiro, uma cortina espessa engoliu as montanhas em
remoinhos de vento, que fazem gemer as árvores desnudadas de folhagem. Um
cenário que convida à leitura. Passo os olhos pela minha pequena biblioteca, sitiada
entre livros de Farmacopeia, de Direito Farmacêutico, de Química Orgânica ou de
Farmacognosia. Fixo-me então naquele livro de capa verde. O seu autor, tem um
simples e desconhecido nome - Manuel Bastos. Não é esta a primeira vez que
folheio este manual de guerra, em tons de poesia. De reler as páginas de uma
prosa onde, no cano de uma espingarda, pousam as asas multicolores de uma
frágil borboleta. Logo ao abrir a primeira página, leio uma simples mas
expressiva dedicatória que diz: “Ao meu amigo Quito com um braço bem fraterno –
José D’Abranches Leitão O9.O2.27”. Não sabia o Leitão que, amávelmente, me
estava a oferecer um livro que tanto me impressionou. Não pela fera guerra. Mas
pela prosa que mata a guerra.
Como o cirurgião de bisturi ágil, que expurga do corpo do
paciente o tumor que lhe ameaça a vida, também eu tento extirpar dos
“Cacimbados” a prosa bélica de quem aponta à imbecilidade dos homens o dedo
acusador, mas que não está ressentido com as armadilhas do Destino. Para
aqueles que ainda vão suportando este monólogo, transcrevo pela pena de Manuel
Bastos, alguns extratos do seu livro: “ Não dei pela noite cair, pela cor a
desbotar-se primeiro no céu e depois na superfície de todas as coisas,
tornando-as mais suaves como se o dia se sentisse cansado …”. Outro exemplo: “
A memória do arco - íris, onde a natureza brinca com a luz e a diferente
textura dos objectos, uma brincadeira da natureza ou uma dádiva dos deuses para
quem não tem mais nada do que os sentidos para perceber o mundo”. Ou então: “
Olho a Lua enorme, em pleno dia, com um ténue halo translúcido a manchar o céu,
agora quase limpo sobre o aldeamento. Tenho a ilusão de estar a vê-la no tempo
presente, mas como se sabe, a imagem que vem ao meu encontro demorou à volta de
um segundo chegar. Algumas das estrelas que hão-de aparecer daqui a pouco,
esburacando o manto negro do céu, podem ter desaparecido muito antes do
primeiro homem ter nascido e eu estarei a vê-las”.
No entardecer do livro, o autor faz a sua reflexão final. “
Algures no Planalto dos Macondes, onde um dia colhi a derradeira imagem de um
céu azul luminoso, antes que a palavra “”FIM” fosse escrita na minha história
de guerra. Lá, onde a fragrância exótica da selva e o relento rançoso da guerra
se prenderam ao meu corpo para sempre, ficou um pouco de mim e, se é verdade
que na Natureza nada se perde, então ainda lá perdura transformado. Sabe-se lá
em quê …
Desejo intensamente que seja uma flor”.
Assim escreve Manuel Bastos. Português, cidadão e escritor.
Combatente da Vida e das palavras. Das palavras doces , que aniquilam a guerra.
Kito Pereira.
Caríssimo Amigo Kito! Gostei de ler ! É realmente um Escritor extraordinário, o meu amigo Manuel Bastos. Cacimbados-A vida por um fio" também é o meu livro de "cabeceira' que leio e releio vezes sem conta. O Manuel Bastos foi Furriel Mil° e foi gravemente ferido numa mina, perto do Planalto dos Marcondes. É um prazer lê-lo.
ResponderEliminarForte abraço caro Amigo.
José D'Abranches Leitão
Nota: também pisei aquelas picadas! Tive mais sorte!
Obrigado José Leitão, gostei do comentário sobre o texto do Kito.
EliminarUm abraço
O Quito desde início do blogue que vai colaborando no blogue, de uma maneira geral com textos, mas também por vezes com fotos, postagens sempre apreciadas com comentários.
ResponderEliminarEntretanto de alguns anos para cá os textos publicados, sejam quem for seus autores deixaram(nem sempre) de ter comentários, a que não é alheio o facto de todas as postagens aqui publicadas também sere partilhadas no facebook e muitas serem repetições de textos já outrora publicadas.
Mas as postagens sejam fotos ou textos têm muitas visualições, como é o caso deste texto que tem 37!
Embora este blogue já tenha uma boa idade de vida, pois nasceu em 2008, tem neste momento mais de dois milhões de visualições!
Foi criado para lançar o Encontro de Gerações e depois de 2012 com 0 4º aniversário, têm-se mantido essencialmente com fotos e alguns textos e sobretudo para publicar aniversários de muitos dos participantes não só no Grande Encontro de Gerações, bem como nos 4 aniversários que se seguiram. Mantenho assim, embora limitadamente, um contacto regular com amigos e amigas que participaram nos Encontros, especialmente em 2008.
Enquanto puder vou continuar!
Posso acrescentar aniversários se houver interessados...
Devo dizer ao Quito que fico sempre agradecido quando publica qualquer texto, pois tenho gosto de os ler, não só pelos temas interessantes numa escrita de grande qualidade, que não passa despercebida nos muitos comentários feitos ao longo de mais de 13 anos.
Obrigado Quito!
Bem hajas, Rafaelito, por nos proporcionares este cantinho de encontro de amigos.
EliminarCom a minha dividida entre duas cidades, continuarei a colaborar sempre que me for possível. Abraço, Rafael ...
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