MAS...É VERDADE, PORQUÊ?
É curioso como, na linguagem humana, um dos pilares
essenciais que a erigem é a suposição de verdade daquilo que se diz ou que se
escuta. Já imaginaram quão estranho seria se, para cada asserção proferida,
tivéssemos de aferir tudo com critérios de verdade ou mentira? No mínimo, seria
desgastante e, na maior parte dos casos, os atos discursivos perderiam toda a
eficácia.
Pensemos nas conversas em família, nos momentos pedagógicos,
nas transações quotidianas. Por exemplo, quando fôssemos ao café, o empregado
teria de aferir se o nosso pedido seria verdade ou não; por nossa vez, quando
perguntássemos o preço, poderíamos duvidar se seria ou não mesmo aquele valor.
“São 80 cêntimos” – diz o homem. “Tem a certeza?“ – perguntamos nós, enquanto
nos questionamos se ele está a falar verdade ou mentira. Felizmente, repito,
não é assim que a verdade funciona e, se não é assim, convém esclarecer como
é.
Há duas maneiras de configurarmos o conceito de verdade. Há
aquela verdade que é demonstrada, porque é necessária, e existe a verdade
baseada na presunção da mesma a partir da autoridade. Como exemplo do primeiro
tipo de verdade, temos a verdade matemática. O que garante as verdades em
matemática é a demonstração. As verdades são fundamentadas em demonstrações e
são verdades necessárias, são algo que está dentro da própria declaração de
verdade e nós tiramo-la lá. Obviamente, haverá estruturas axiomáticas que
suportam esta demonstração das verdades. Veja-se o teorema de Pitágoras. Vai
ser eternamente verdadeiro na base axiomática em que foi construído e pode ser
demonstrado sempre e em toda a parte.
Já na vida quotidiana, a grande maioria das verdades que nós
temos é baseada no critério da autoridade. Nós acreditamos em algo porque uma
autoridade (a mãe, um professor, um livro) o disse um dia. Na realidade,
delegamos em outrem o dever de ter verificado a verdade e, por isso, confiamos.
Começamos cedo: começamos com o pai e a mãe, com os professores... Neste modelo
baseado na(s) autoridade(s), algo é verdade porque alguém diz que é.
O que não poderá haver é duas verdades, ou melhor, não pode
haver verdades alternativas. As mentes é que configuram modelos que tornam
verdade aquilo que o não é. Nos dias de hoje, é uma crueldade verificarmos que
as supostas autoridades são também exemplos de transmissão de mentiras,
manipulando, distorcendo e apresentando pseudociência. Basta ver a comunicação
social tão distinta sobre a guerra, as supostas verdades das religiões, as
experiências científicas que não o são ou não provam nada. Tudo isto frutifica
porque somos propensos a aceitar o que vemos, lemos e ouvimos como sendo
verdades e pouco mais fazemos do que aceitar. Quem primeiro nos chegar é que
assenta arraiais no nosso entendimento e assim ficamos.
Nós próprios, agentes educativos, exigimos que nos seja
atribuído esse crédito da verdade, apoiando-nos também nos manuais, na
investigação e nas aprendizagens que fizemos a montante. Se os alunos
duvidassem, recusando, de cada uma das asserções feitas pelos professores em
sala de aula, não seria possível ensinar nem aprender, porque, acreditem,
aquilo de novo que o professor transmite, em termos de conteúdos, é muito
próximo de nada, de um zero redondo. Dito de outra forma, os conteúdos
programáticos que são lecionados durante um ano, são a repetição daquilo que
outrem disse e nós passaremos aos alunos. Quase tudo é verdade baseada em
autoridades e só uma margem muito pequena é adição do professor. Não falamos
aqui, obviamente, das competências a desenvolver, pois aí outro galo canta e a
qualidade pode revelar-se.
Voltando à asserção da verdade no ato pedagógico, a pequena
margem que nos afasta do zero absoluto é o fator dinâmico do conhecimento, da
criação do saber. E não duvidem de que hoje se asseveram verdades que há 100
anos não o eram, porque alguém, um dia, se desviou da aceitação cega daquilo
que lhe disseram. Aprender com duvidar é, muitas vezes, teimar na desconfiança
e permite questionar as verdades feitas. Assim se vai mudando o paradigma e a
ciência. De hoje para amanhã parece pouco ou nada, mas, olhando para séculos
atrás, mudamos de uma verdade que afirmava que a terra era plana para uma outra
que afirma que ela é redonda. E na medicina? O que seria se não se tivesse
aprendido com duvidar? Neste campo não é preciso olhar para séculos pretéritos;
basta olhar para a década recente. São tratamentos que se provam ineficazes,
são patologias que, afinal têm outras causas que não as inicialmente
diagnosticadas, enfim, é um rol de inovações e avanços que ocorrem, só porque
alguém resolveu colocar em causa a verdade das autoridades.
Por todas estas razões, considero que o papel de quem educa
é, obviamente, veicular saberes e técnicas para criar competências; contudo, é
necessário temperar cada verdade com um pouco do sal da dúvida, para que os
alunos aprendam a questionar, progredindo, desenvolvendo espírito crítico e
tomando nas mãos as sementes daquilo que nos faz humanos: aprender duvidando.
Junho de 2022
Antonino Silva
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