A esperança é o que cada um quiser.
Para grande parte das crianças do ensino público, este mês de junho é a passagem de um estado a outro, com mudanças substanciais. Num determinado dia do mês, deixam o stresse das últimas avaliações e da escola e passam a um estado de, ainda que efémera, beatitude e ledice das chamadas férias grandes. Cada criança vivê-las-á a seu modo, mas é certo que muitas delas vão recuar aos anos de ontem e recuperar hábitos que só em casa dos avós põem em prática.
O Alexandre é um desses felizardos que salta nas esferas do tempo com a mesma facilidade com que a pena se deixa arrastar pelo vento. Desde que começara o terceiro período, o cachopo, à noite, na cama e antes de adormecer, magicava como é que a havia de fazer. Provavelmente precisaria de paus e de arames, mas não podiam ser coisas muito duras de trabalhar. O avô não ia deixá-lo usar a “blancandequer” que tinha pendurada na loja, pois a máquina podia magoá-lo na empresa; por outro lado, os arames tinham de ser bem macios. Lembrou-se de que, uma vez, o avô lhe tinha dito que o arame queimado era bom e se dobrava bem.
Com o projeto calado na mente, cada noite em que observava o teto do quarto ainda pejado com umas estrelas fluorescentes que vinham do tempo de bebé, a sua mente divagava, parecia-lhe que as formas voavam ao redor da cabeceira e que o seu projeto ganhava corpo e dimensão, como num holograma que se lembrava de ter visto num filme do Tom Cruise.
Mal acabaram as aulas, foi um ver se te avias a escarafunchar a paciência do pai e da mãe para o levarem para a aldeia, para casa dos avós. Só ele sabia a razão de tanta pressa, pois nem os pais nem os avós o sabiam tão afetuoso quanto isso para ter, assim, tanta vontade de os ir ver. E tinham razão: mal saltou do jipe do pai, o Alexandre raspa a cara por cada um dos mais velhos, com um impessoal “olá vó, olá vô”, e correu para trás de casa, em direção ao ribeiro, onde havia um renque de sabugueiros que considerava ideais para o que queria fazer.
Depois do almoço, quando os adultos foram dormir a sesta, lançou mãos à obra: foi à gaveta da cozinha e tirou uma faca, e dos arrumos do avô tirou um alicate corta-arame, uma sovela de sapateiro e um pequeno rolo de arame queimado. Agora sim, a coisa ia dar certo! Correu até à margem da ribeira e cortou umas hastes jovens de sabugueiro que talhou em pequenos troços. Sentou-se à sombra e, pacientemente, foi furando cada pauzinho e inserindo os arames também cortados que, com muito cuidado, dobrava em cada uma das pontas. A obra crescia e, para ele, não havia nada mais perfeito. Com mais um ou dois dias de trabalho, o projeto estaria terminado e, então, chegaria o grande dia.
Foi na manhã de São João que o Alexandre subiu à leira da Barroca. Ele sabia que eles andavam por lá, pois todos os anos era a mesma coisa e não falhavam. Este ano não seria diferente e, pela primeira vez, teria o seu, sem ajuda de nenhum adulto.
Os seus olhos brilhavam com a felicidade antecipada e nos seus olhos repousava a crença de quem é criança e acredita que o mundo é bom. Nada se faz por mal e tudo se faz porque sim. Nada tinha o sabor do irremediável e o sol que o cobria derramava o ouro sobre algumas ervas secas que ela saberia usar para a sua tarefa. Mas, antes, havia que apanhar uns rebentos de serradela, pois o bicho teria de comer quando tivesse fome.
Escolheu um talo flexível de junça meio seca e puxou as calças para cima. Tinha de se ajoelhar, não havia outro remédio. Com os cotovelos e os joelhos fincados no chão, procurou o rasto e introduziu a haste de junça no buraco. Repetindo a tradição centenária que tinha aprendido com o avô, começou a cantilena:
“Gri-gri-gri
Sai cá fora, c'a tua mãe 'tá aqui
C'uma faca d'algodão
Que te cheg'ó coração-”
E vai por aí fora, repetindo, até que saiu do buraco o mais belo grilo trovador, que ele, imediatamente, meteu na gaiola e o qual, nessas férias grandes, seria o seu maior amigo nas noites de verão em casa dos avós.
Antonino Silva
Não é Anto nono, é Anto décimo
ResponderEliminar