A antecipar a noite..
Não há berço como o colo
Deve ser da quadra. Só pode ser da quadra. A verdade é que a sensibilidade anda mais fina nestes dias que antecedem o Natal. Parece que olhamos o mundo com outros olhos, cobertos com uma névoa de ternura e bem. Esquecemos – ou queremos esquecer – as tragédias e pensamos que a esperança vem para se instalar e ficar. No íntimo, sabemos que não será assim, mas, nesse mesmo íntimo, desejamos que assim fosse. Nestes dias, quase todos olhamos para os que nos são diferentes e temos uma enorme vontade de partilharmos com eles a mesma viagem e não os deixarmos seguir num caminho divergente que os faça sentir sós. Enfim, andamos com a sensibilidade mais apurada e à flor da pele.
Na outra face da moeda temos as memórias de natais passados, cada uma mais nostálgica do que a outra, mas todas tão saborosas de recordar. Sempre associei o Natal à palavra “colo”, mas não me perguntem porquê. Por colo entendo as memórias do acolhimento maternal, o aconchego da casa, o espaço da minha aldeia, o conforto dos conhecidos. Acho que sempre foi por isso que me emocionaram mais os presépios onde Maria tem o Menino ao colo do que aqueles onde o Menino repousa deitado na manjedoura. Não sei explicar, mas é assim que o sinto. Mas o colo é, também, a memória dos espaços e dos rituais dos dias maiores do Natal.
Então, a noite de consoada era, para mim, um caleidoscópio de momentos felizes, todos tão bem encaixados como as figuras hipnotizantes de luz e cor que por casa havia. Já noutro momento falei do presépio onde, em perfeita harmonia não racional, a mulher da cesta de ovos convivia com o músico da banda e um dos reis magos observava ambos. Nada parecia estranho aos olhos de criança, porque aqueles cenários faziam sentir; não faziam pensar.
Outra lembrança de rapazote era a ciranda que fazíamos pelas capelinhas – entenda-se, pelas casas dos vizinhos – de uma parte da aldeia. Aqui, “vizinhos” é força de expressão, pois esse cirandar era seletivo e percorríamos um bom par de quilómetros para visitar apenas quatro ou cinco casas. Os aventureiros eram apenas quatro: eu e os meus dois irmãos rapazes mais velhos e um caseiro da quinta, o António Pataco, que tinha uma candeia a petróleo, a qual servia para regar nas noites de verão, mas que nesta noite iluminava os caminhos estreitos por onde tínhamos de passar, para não cairmos na barroca ou nos regos de água, abundantes e gélidos.
Lá pelas dez da noite, vestíamos os casacos grossos, ou mesmo uma manta, e seguíamos pelo caminho das Compridas até casa do Alanca. Aí chegados, batíamos à porta da cozinha, que se abria generosamente, para entramos e nos aquecermos. Num quarto de hora bebíamos vinho do Porto, comíamos uma orelha de abade e até se jogava uma sueca ou uma partida de bisca lambida. Terminado esse tempo, antedávamo-nos Boas Festas e subíamos à casa do sr. Afonso, onde o ritual de repetia. Aqui demorávamo-nos um pouco mais, pois em casa havia três rapazolas também da nossa idade, o que nos fazia sentir mais entre iguais. Se alguém oferecia, até aguardente se bebia, para “aquecer a alma”, como dizíamos.
Da Aboadela passávamos à casa do sr. Joaquim, conhecido com o Coditas, e havia sempre mais uma cartada e vinho quente com canela, coisa incomum na região, mas que naquela casa fazia parte das ementas de Natal. O Pataco não abdicava de jogar uma ou duas partidas com o seu compadre e só muito perto da meia-noite é que seguíamos para a casa do Costa, no Serrado, onde ficávamos bastante tempo na conversa e na jogatina, até o sono nos mandar recolher a casa. Em casa do Costa havia uma peculiaridade: o Zé do Serrado, seu pai, era já muito idoso, mas ainda muito ativo. Conversava bem e era conhecido por trazer sempre nos bolsos do colete pelicas de bacalhau secas, para peguilhar os copitos de que tanto gostava. Contudo, na noite de Natal, depois da ceia, o sr. Zé só bebia aguardente, mas era aguardente fina, ou seja, uma aguardente com um teor alcoólico duas vezes superior ao bagaço normal. Uma noite, caí no erro de beber, sem aviso, daquele elixir e ainda hoje sinto as chamas a saírem dos olhos em fogo, tal foi a lavagem interna que me provocou.
De madrugada chegávamos a casa com a certeza de que, na manhã seguinte, teríamos, cada um, o nosso sapato cheio de confeitos, para jogar ao “par ou pernão” durante o dia de Natal.
Não há nenhum berço dourado do conforto presente que valha por aquelas memórias que vão ficando mais doces, pois destilam com o tempo.
Com tanto ritual, tantas memórias e carinho dos tempos vividos, a que melhor colo poderei encostar-me?
24 de dezembro de 2022
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