O PINTO CALÇUDO
Em tracejado largo, os alinhavos amarelados ponteavam a bainha postiça. Embora ainda em bom estado, as calças azul escuro que lhe ofereceram, tinham um bom meio palmo a menos do que a medida certa para a sua altura.
Ao contrário, na camisa às riscas, quase nova, que surripiara de um estendal na Estrada da Beira, cabiam lá dois como ele. A mais ligeira brisa enfunava-a , tal como o calor da chama enchia um balão em noite de São João.
As mangas arregaçadas deixavam ver os braços magros, ossudos, que balançavam quando saracoteava as pernas finas no seu caminhar desajeitado.
Os lábios ressequidos e lacerados, deixavam ver, quando se abriam num arremedo de sorriso, dois caninos escuros, apodrecidos, numa boca de onde já tinham há muito desaparecido os incisivos.
Na taberna do Sr. Ângelo, paragem obrigatória depois de deambular pelo bairro a pedir esmola, dava estalos com a língua e emitia um cavernoso som gutural de aprovação, de cada vez que emborcava mais um copo de três.
A troco de um tinto que lhe pagassem, metia na boca uma bomba de carnaval, acendia-lhe o rastilho com a ponta do cigarro e deixava que ela, com grande estrondo, lhe rebentasse entre os lábios.
E exibia, orgulhoso, a seguir à explosão, a fumarada que lhe saia da boca e do nariz.
Lembro-me que morava no Areeiro e que lhe chamavam o “Pinto Calçudo”, mas não me recordo já do seu verdadeiro nome.
Rui Felício
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