BEIJAR AS PEDRAS
As paisagens naturais que foram sendo modificadas pelo homem acabam sempre por, de uma forma ou de outra, emergir de tempos a tempos, fazendo valer as memórias daquilo que foram. Parece mesmo que há uma teima intrínseca de não deixar à vontade humana os troféus de uma batalha que nunca foi perdida.
Lembremo-nos, por exemplo, das estradas que, deixando de ser usadas, muito rapidamente são reocupadas pelos tapetes de vegetação que antes aí existiam ou dos rios que, modificados no seu curso, em tempos de cheia, regressam ao leito que sempre foi seu. Em alguns casos, essa remontada é inócua, mas noutros a lei da natureza leva consigo vidas e bens, que nunca deveriam ter estado ali.
No parque do Gerês/Xurés, a barragem do Alto Lindoso pôs travão ao curso do rio Lima, constituindo um recurso precioso para aproveitamento energético e também para reserva de água doce, tão escassa em muitos meses do verão. No ano de 2022, a cota da barragem desceu assustadoramente e deixou à mostra as ossadas de casas e aldeias ribeirinhas bem como os esqueletos das árvores que compunham o verde da galeria ripícola deste rio.
Aceredo foi um dos casos mais mediáticos e mais visitados no ano passado. Milhares de pessoas se dirigiram à aldeia habitualmente submersa e fotografaram os detalhes de uma vida que foi e os objetos de memórias dos outros. O rio, ao subir, foi-se fazendo mar, mar de angústias e de saudade para aqueles a quem foi negado o direito de ficar. Nunca o abandono forçado do lar foi coisa boa: há sempre uma parte que vai e outra que fica e, dizem eles, os expulsos, que nunca mais foram os mesmos. Talvez um dia tudo se esqueça, mas, por ora, estão ainda bem vivas as pessoas que tiveram de partir na década de ’70.
Havia uma multidão de curiosos visitantes que tudo fotografavam, que percorriam as antigas ruas da aldeia então cobertas por uma fina patina de lodo, que passavam as mãos pela água da fonte, ainda funcional, e espreitavam o motor ferrugento do Ami 8, deixado para trás na mesma loja onde agora descansa, à espera das leis da química que noutra coisa o convertam. Havia sorrisos e gargalhadas, fotos em pose e selfies para memória futura e conversas despreocupadas, tão circunstanciais como as de quem visita a Feira Popular nas festas de verão.
Mas nem todos se sentiam assim. Havia uma mulher, vestida de negro, que descia do miradouro com passos hesitantes, não se sabe se pela idade, se pela emoção, que fotografava tudo com o olhar. Onde os outros viam ruas enlameadas, ela via ruas cheias de vida, de crianças, jovens e adultos, ouvia as conversas dos vizinhos e parecia-lhe escutar o cláxon do peixeiro que às quartas passava com o peixe fresco. Seguia com o rosto pétreo e o olhar fixo num alpendre que divisava na curva, depois do moinho. Passou a mão na água que caía da fonte e viu assente nos ferros o caneco de aduelas que tantas vezes levara à cabeça para a cozinha da sua casa, que era já depois da curva.
As paredes estavam lavadas pelo tempo, nuas, todo o estuque das divisões se tinha ido e grande parte das madeiras de suporte repousava entre a lama do piso inferior. Ali via ela as paredes interiores com barro caiado, os quadros da sala de comer, as imagens do Sagrado Coração de Jesus e Sagrado Coração de Maria em caixilhos de vidro com molduras de espelho vermelho e a mesa, ao centro da sala, com os bancos corrido à volta, onde os filhos e o marido se sentavam. Sentiu o frio dos invernos húmidos da montanha e as sombras dos dias quentes; gritou com os pequenos que fugiam para o rio, lá em baixo, para saltarem do amieiro mais alto, estatelando-se na água do açude. Era tudo tão vivo… tudo tão presente!
Naquela casa fora feliz, criara os seus filhos e tivera a sua rede social; hoje, já viúva e com os filhos bem na vida, não conseguia sentir-se completa. Só neste dia, só nesta manhã de domingo ela sentia que um círculo se fechava. Queria partir, mas partir em paz. Sem que ninguém a visse, subiu o alpendre e abeirou-se das pedras da entrada de casa, abraçou-as uma por uma e pediu-lhes desculpa por ter fugido.
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