Gente cheia de ontem
O respeito devido a uma geração que reconstruiu o mundo no pós-guerra deveria ser, julgo, um dado consensual e adquirido por todos. No entanto, muito daquilo que vemos, ouvimos e lemos não aponta nesse caminho.
Na realidade, as pessoas seniores que hoje têm noventa e muitos mais anos são os filhos de uma Europa devastada e de um Planeta que se revolveu numa guerra à escala global. Pela primeira vez, a guerra não reconhecia fronteiras e, desde o Atlântico ao Pacífico a espécie encarregou-se de destruir o que tinha feito até então. Mas foi essa mesma espécie que, dos escombros fumegantes e das cinzas reconstruiu um mundo de nações unidas e lhes deu uma carta de direitos.
O mundo em que hoje vivemos é uma obra concetual dessa geração que se está a findar. A sua obra deixa-nos inquisitivos e um pouco perplexos. O que poderíamos nós fazer que se aproximasse um pouco da sua tarefa épica?
Em sentido inverso, olhando sobre o ombro para o que se conhece, reparamos que os idosos são vistos como matéria gasta, alguém que não produz e apenas consome recursos de uma sociedade, ela própria, consumista. As faltas de respeito correm uma escala de indiferença, desde aqueles que, socialmente, são desfavorecidos, até pessoas ditas cultas. Não devemos procurar apenas nas franjas marginais da sociedade os casos de maus tratos a idosos; há palavras e ações que ofendem também nas outras classes. Um dos casos mais recentes é a subliminar mensagem da Comissão de Trabalhadores da RTP que recusa a participação de Marçal Grilo no Conselho Geral Independente da estação pública, chamando-lhe “Ex-ministro octogenário”, como se a idade fosse um empecilho.
Quão distantes estão dos preceitos clássicos da herança de uma vida longa e vetusta, plena de sabedoria e experiência, tão necessária à gestão da coisa privada e da coisa pública. Às vezes parece, mas não são inócuas as palavras "senador" e "senado". Os senadores da república seriam aqueles que eram o garante da experiência e consequente obra onde assentava a imutável certeza de que o património de um estado iria ser transmitido à geração seguinte, sem atropelos nem incertezas.
Na Dedicatória d’Os Lusíadas, Camões soube tão bem tipificar o modelo de governante que queria para o jovem rei D. Sebastião: de tenro gesto (rosto jovem), mas com a competência de um adulto e a sabedoria de quem sobe ao Eterno templo, um velho, portanto. Talvez Camões se tenha enganado e a sabedoria do rei não fosse assim tão justificada, mas as palavras do épico saem de uma conceção honesta e habitual de que a velhice era um tesouro acumulado de sabedoria.
Nós, por cá, vamos tendo exemplos acabados disso: Eduardo Lourenço e Rui Nabeiro são dois casos felizes de senadores respeitados; mas há tantos outros de quem ninguém fala, não quer falar e tenta, mesmo, esconder ou ignorar. Ao fazê-lo, esta nova geração esquece que os idosos são pessoas com tanto ontem que por mais amanhãs que ela viva, nunca lhes chegará aos calcanhares.
Antonino Silva
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