SABOR AMARGO ...
Quando o Alípio me disse que aquela caixa de farinha "Amparo" trazia brinde não me mentiu. Chegado a casa neste meu bairro de todas as memórias, abri sofregamente o pacote e lá vinha uma miniatura quase microscópica de um cãozinho em plástico. Uma insignificância, mas que aos meus olhos de criança era como que uma dádiva do mundo. Do meu mundo. Do meu mundo de um menino em calções que lançava papagaios de papel no "Cavalo Selvagem ". Do meu mundo de correr atrás de uma bola colorida. Do meu mundo de gargalhadas de felicidade sentado na sela de um cavalinho de carrossel.
Meu Bairro meu sangue. Meu bairro de onde um dia parti como um caminhante da Vida. A mala na mão de um soldado sem pátria que um dia fui. Longe, lá longe. A mala na mão no dia em que migrei para a zona mais raiana, onde constatei outras realidades e fiz amigos. Mas o Bairro, sempre o Bairro, como cais dos meus afetos e das minhas raízes choupalinas. De mala na mão voltei mas o cabelo embranqueceu. Olhei o Bairro e choquei de frente com uma nova realidade. As crianças cresceram e partiram. Alguns para a capital do reino na esperança de melhores condições de vida. Outros ficaram. Outros partiram e voltaram. Tal como eu.
E ali, na zona comercial do Bairro, fundámos a sala de estar da cidade. Ponto de encontro de tertúlia. Entre dois cafés e um pastel de nata se fala do passado e do presente. Perguntamos do futuro. Conversas que só para nós fazem sentido. Quem se interessa pelo nosso baú das memórias ? Ninguém. Apenas nós. Mas ali, naquele pequeno rincão bairradino, cruzamos afetos e fraternidade. Ali podemos comprar flores para dias festivos. Ali olhamos o talho e o Zé na sua bata branca muito orgulhoso de também pegar no Andor da Rainha Santa. O Bruno da loja dos jornais. E o jovem Candeias com a sua airosa barbearia onde me sento à espera de vez a ler as notícias do "Diário de Coimbra. Ao lado da loja do Candeias, entramos na livraria. Olhamos este ou aquele exemplar cujo título nos suscita curiosidade. Abrimos o livro e lemos uma qualquer passagem da página quinze, vinte ou trinta. E depois de o pagarmos, saímos com aquele nosso novo amigo debaixo do braço.
A mercearia do Lindão vai fechar. E ele, o Lindão, deu-me a notícia de olhos pregados no chão. Não por falta de clientela, mas poque ao que afirma o prédio vai ser vendido. E a sua mercearia vai partir para outro ponto já referenciado da cidade. Foram cinco anos de labuta. Cinco anos da sua cordialidade. Uma efémera passagem no compêndio das lojas míticas do bairro. Pequenas lojas do passado mas que deixaram rasto em todos os que vivenciaram aqueles tempos e amam o Bairro. O nosso Bairro. Resistir ao triturar dos tempos é a palavra de ordem. Com regozijo vemos o restaurante Norton manter a sua clientela. E o Samambaia voltou a abrir os seus chapéus-de-sol na esplanada.
O fechar de uma porta não é um fechar de vida. Mas fica sempre um sabor amargo. Mas talvez ali, um qualquer dia, um novo espaço renasça das cinzas. Porque o Bairro, o nosso Bairro, tem uma história e um passado. Urge defendê-lo. E nós, os que povoamos este nosso universo neste cantinho da cidade, temos a obrigação de ajudar o pequeno comércio para que sobreviva.
Queremos um Bairro ativo de portas abertas. Recusamos um Bairro desfalecido de portas fechadas.
Kito Pereira
Muito bem!
ResponderEliminarO Bairro, o Marechal Carmona/Norton de Matos (a que não me habituei ) não voltará a ser o mesmo. Não pode. Tudo muda, nós mudámos. As recordações ficaram, fazem parte de nós. Na rua da polícia, a Rua Gil Eanes continuamos a celebrar o privilégio que foi ali viver, com um Encontro anual. E voltamos a ser miúdos e brincámos... brincámos! Fua 20 lá estaremos! Beijinhos
habituei)
Anónimo? Sou a Mariazinha Leão e não tive oportunidade de corrigir o texto!
ResponderEliminarCompreendido Guilhermina
ResponderEliminarUsar URL
Gosto destes trechos de boa escrita do Quito falando do Bairro.
ResponderEliminarNão fui criada no Bairro. Cheguei aqui, vinda da cidade grande para continuar os meus estudos. Fui recebida com muito carinho e identifiquei- me com este ambiente, passando horas de convívio e estudo no Samambaia. Aqui (aí…) ganhei tantos e tão bons amigos que, obrigada a regressar a casa, voltei assim que pude. Foi aí que conheci o amor da minha vida que, também não sendo do Bairro, foi adoptado como tal. E ainda hoje, vivendo em Aveiro, vamos, aos Domingos, com a desculpa do almoço, abraçar os amigos que permanecem no Bairro.
Obrigada Quito!
E este domingo será em
ResponderEliminarVila Nova de Poiares um cozido á Portuguesa....que
vai ser uma beleza....
Estamos preparados para mais uma vez fazermos a viagem juntos, com embsrque no emblemático Café SAMAMBAIA neste Bairro que o Quito textou!
Gostei muito deste texto mesmo longe ja tinha saudades destas estorias escritas pela mao do Quito.
ResponderEliminarObrigado e pode continuar a escrever.
lucinda.
Boa noite Lucinda
EliminarFelicidades ao trio
Obrigado bom cozido a portuguesa no fim de semana.
ResponderEliminarAqui comeca a estar fescote.
Cumprimentos do Trio.