sábado, 5 de abril de 2025

CONTOS CAMPESINOS TEXTO KITO PEREIRA

A PUREZA INICIAL ...

É uma estranha comoção esta, a que me brota dos sentidos. Neste final de tarde sereno, deambulo por este vácuo do Tempo. O sol, andou todo o dia atarefado, a querer romper por entre  nuvens. Ao longe, lá ao longe, diviso uma mancha de céu azul. E, por detrás, em pinceladas dispersas, um cenário de cor escarlate - um quadro de Monet. 

Por um caminho estreito progrido em direção ao Juncal do Campo. O velho carro conduz-me agora até à base da colina. Por entre ramagens, diviso os muros do Campo Santo e, lá ao fundo, embrulhada na sua roupagem secular, a Gardunha. Do lado esquerdo da estrada, um campo de oliveiras. Avisto um habitante daquele povo pendurado numa escada. É hora de colher aquela dádiva da natureza – a azeitona. Reconheço-o e aceno-lhe. É o Jerónimo. Corresponde ao meu cumprimento com o gesto largo do boné que lhe vai forrando a cabeça das intempéries do tempo. Que não das intempéries da alma. No chão, um enorme pano verde. É o regaço onde se acolhe o fruto. É o recomeço do ciclo do azeite. Enquanto me vou aproximando da aldeia, devagar, vem alguém ao meu encontro. É a Graciosa. Vem ligeira no seu andar. O seu jeito ladino de lidar com a vida. Se calhar vai para o lar dos idosos – penso - começar o seu turno. 

E, naquela calma espacial, naquele turbilhão de silêncios, um som metálico e soturno sobressalta-me os sentidos. É o sino da aldeia. Ouve-se várias léguas em redor. Pelas suas badaladas, se medem as horas e o clamor dos dias festivos. Mas também da morte, quando bate os seus compassados “sinais”. E aí, o povo é um só. De todos os Lugares aparece gente que se esgota por estes caminhos de Cristo. Conhecem-se todos uns aos outros, neste pequeno universo de solidariedade fraterna. E a notícia de um passamento, transmitida de boca em boca pelo badalar de um sino, é como fogo a arder em palha. 

Mas há os dias festivos. Nada mais triunfal que uma festa de aldeia. É o dia de visitar as “alojas” do povoado. De provar o vinho espesso. De rumar ao largo da festa de bandeiras enfeitado. De comer um frango assado em reinadio convívio numa mesa velha e tosca. Mas, também, de vestir o melhor fato e acompanhar o padroeiro São Simão no seu andor. De pôr as colchas mais ricas à janela, mesmo que modestas. Na frente, o padre vai rezando a sua ladainha, acompanhado por um séquito de fiéis. Depois a banda, nos seus uniformes azuis. O regente à cabeça do cortejo, com o seu fato aprumado. A menina de tenra idade, de saia curta e meias brancas, vai transportando o estandarte.  O homem do trombone, anafado e de bigode, com o suor a acudir-lhe ao rosto. De novo retomo a minha atenção à estrada. Deixei-me afundar nos meus pensamentos. Fui levado pela corrente dos dias sem fim. E logo à noite, quando a explosão de um outro mundo me entrar pela casa adentro dando-me notícias escandalosas do meu outro país, de novo cerro os olhos num lamento. Recordo então do Jerónimo pendurado numa escada acenando-me com o seu boné. Aquela forma doce de caminhar pela vida. É o povo na sua essência. É o regresso à pureza inicial.

Kito Pereira (contos campesinos)

 

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