sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

UM CONTO DE NATAL ...

Choupal ...

O silvo agudo do comboio a vapor, derramou-se pelo Choupal, naquele entardecer sereno. Depois, veio o silêncio. Apenas os ténues raios de sol, coados por entre a folhagem, davam à Mata uma dimensão irreal. Ali, tão longe e tão perto, o Mondego fundia-se com as margens, afagando os campos de Montemor no seu cantar Coimbrão. Era o seu trinar milenar, conhecido por todos aqueles que habitavam a Mata ou ali tinham o seu sustento. Naquela noite, do dia 24 de Dezembro de 195O, o rio, imprevisível, engrossou o seu caudal. Inundou caminhos e espalhou detritos. Na margem esquerda, o velho “Pama” rezava, para que a frágil ponte pedonal não fosse tragada pelo Mondego e com ela o seu magro pecúlio de assalariado e de barqueiro. Tornava-se agora impensável utilizar a passagem em estacaria, pelo risco de se desfazer em mil bocados.
De todos os que ali estavam, debaixo daquele enorme telheiro generoso, apenas o Adelino “engenheiro” teria que atravessar o rio. Mas não lhe fazia diferença. Na margem esquerda do Mondego, não tinha ninguém à sua espera. Vivia sozinho, numa aviltante pobreza. Dormiria ali, olhando o céu estrelado, numa noite igual a outras noites. E amanhã, quando o Sol nascesse, viria mais um dia igual aos dias iguais. Os outros, quase tão pobres como ele, olhavam-se num silêncio cúmplice, irmanados no mesmo pensamento. Jamais, deixariam o “Engenheiro” sozinho. Então, decidiram todos, dormir debaixo do enorme telheiro. Qual Figura Bíblica, apareceu um homem fardado de azul. A par com os assalariados da Mata, fez e fizeram naquele local, uma enorme e acolhedora fogueira, à volta da qual todos se sentaram. Da cozinha, apareceu uma ceia farta e reconfortante. A noite agreste, era agora um serão acolhedor de conforto, em que todos riram, comeram e beberam o seu quinhão. Cantou-se e Louvou-se o Deus Menino. E sobre as enxergas e ao calor da fogueira, já a madrugada ia alta, adormeceram.
Naquela noite fria, não houve presentes. A pobreza, apenas dava para comprar as couves para o caldo e pouco mais. E até um simples par de meias para calçar com os socos, não era mais que uma distante quimera. Porém, o Adelino, analfabeto e habituado à rudeza dos dias pardos, percebeu que na margem direita do Basófias, tinha uma família. A Família da Mata do Choupal, com quem trabalhava todos os dias. E, naquela Consoada, até o rio o abraçou num gesto de afeto, não lhe permitindo a veleidade de tentar atravessar a ponte do barqueiro, em direção à sua humilde cabana de solidão.
Estava escrito no Firmamento daquele manto estrelado, que a Solidariedade Fraterna se sentaria à mesa dos pobres, com carvalhos e eucaliptos como testemunhas da Bondade e Generosidade dos Homens. De alguns Homens.
E o Cantar Trinado do Mondego, envolto na velha capa de Menano.
Q.P.

9 comentários:

  1. O teu choupal a proporcionar-te um lindo conto de Natal!

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  2. Fala quem sente, escreve quem sabe fazer sentir.

    O Quito sente porque ali viveu a sua infância. Guardou na sua memória infantil de criança nascida há pouco mais de um ano, esta noite especial de solidariedade humana, no ano de 1950.

    O Quito sabe fazer-nos sentir quando escreve e recorda-nos como eram assustadoras e inesperadas as cheias do Mondego e como naquela Noite de Consoada o medonho caudal que desaconselhava a travessia, serviu para que o Adelino tivesse com ele a família que não tinha.

    Por uma noite que fosse! Igual a tantas outras, mas tão diferente de todas as outras...

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  3. Mais um belo conto do Quito! Um conto de Natal a fazer-nos lembrar as extremas dificuldades de outrora e a dizer-nos que é nas maiores dificuldades que os homens se unem!
    Gostei! Que mais poderei eu dizer?!...

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  4. O Mondego e o Choupal abraçam-se às memórias do Quito que aproveita para nos abraçar a todos nós.
    Obrigado, amigo. Um bom Natal.

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  5. O Adelino, um pobre "engenheiro" que sabia ler o firmamento!
    E, assim foi o seu Natal, sentado com a Solidariedade,a Bondade e a Generosidade, tendo como pano de fundo o Mondego.

    Um Bom Natal, Quito.

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  6. Lindo e humanista conto de quem retém na memória de infância um momento em que a comunhão da partilha soube ultrapassar aquele tempo de dificuldades.
    Bom e Feliz Natal para ti e família.
    Um abraço
    Abílio

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