sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

ENCONTRO COM A ARTE


CONTOS
da
Daisy

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A TERESINHA


— A «Lissa» é feia?
A Teresinha olha-me, os olhos muito grandes, risonhos, lançando para o ar a pergunta, ùnicamente para me despertar a atenção.
— Não é.
— Pois não.
Amanhã, vou dizer-lhe que o detesto. Falar-lhe, bem de frente, e reproduzir-lhe exactamente, o que me vai na cabeça. Não tenho ciúmes. Sinto-me, simplesmente, despeitada. A Luisa não é feia. Não é. Pelo contrário, é bastante, bonita. Mas a Luisa não é para ele. E, daí, talvez seja.
— A «Lissa» é má?
— É! — gritei.
A pequenita encolheu-se e parou de mexer a cadeira-baloiço. Ficou muito calada, pasmada e assustada e, como a medo, atirou:
— Olha a tua «moneca»... — e apontou a boneca velha em cima da cama.
— Não ma emprestas?
Entreguei-lha e afaguei-lhe a cabecinha fazendo-lhe voltar o sorriso.
Ali estava eu, sem ter dormido sequer um minuto, enquanto o menino se retemperava, estirado, das forças que a Luísa lhe havia feito perder, toda a noite. Não gosto da irmã dele. Há qualquer coisa nela que me faz lembrar... lembrar... por Deus, porque hei-de matutar sempre na mesma coisa? Mas não cabe em mim pensar ou não pensar... E, sem querer, volto a ver a mesma cena, recuo uma dezena de anos e dirijo- -me à biblioteca, de laços azuis a prender as tranças loiras, a saltitar, contente. De novo abro aquela porta, ansiosa por me sentir estreitada nos braços do pai, que vem de viagem. Da mesma maneira, abro a boca e não digo nada, e fico especada, à entrada: o pai e... aquela mulher!... Eu mal a vi quase não tive tempo de a fixar, porque ele se pôs à frente, porque ele tentou balbuciar algo, e eu o abandonei, fugi, sem saber que juízo fazer... Mas aquele rosto... a cara da irmã do Chico, que eu nunca vira...
Não quis ser malcriada, mas a repulsa que ele me causou, foi mais forte.
— Tu ontem «fotes» à festa...
Eu ontem fui à festa. A Teresinha também o sabe. Fui à festa, e vim cedo. Zanguei-me com o Chico. Ele não gostou e... voltou à namorada antiga... A Luísa é má. Mas eu amo-o. E não me interessa mais nada, não me interessa...
Olho a pequenita, na minha frente, mas, a pouco e pouco, vou deixando de a ver. Fixo um ponto indeterminado, vejo os olhos dele, iracundos, e oiço-o balbuciar:
— Que tem a minha irmã que te desagrada? É a minha família. Não existe, para mim, mais ninguém além dela. Criou-me desde miúdo, como uma mãe. Não te compreendo. Quis apresentar-te, agora que ela regressa. Quis fazer-lhe sentir que o seu lugar ia ser ocupado por ti. E manténs-te calada toda a tarde, mal respondes ao que ela te pergunta, e dizes-me, agora, que não te agrada!...
— Não quis ferir-te, Chico. Acredita, disse-to para me desculpar...
— Tens de concordar que foste bastante antipática!
— Perdoa... não posso continuar aqui...
— O quê?!
— Não quero magoar-te, Chico. Porque havemos de discutir? Só tu me interessas.
— A minha irmã faz parte de mim... Não posso viver com uma pessoa que detesta aquela que me criou. Podia ser minha mãe... podia ser tua mãe...
Minha mãe... Mas ele não sabia... mas ele não sabe...
E eu não quero... eu não posso voltar a vê-la. O meu inconsciente acorda e... eu sofro.
— ‘Tás a chorar...
— Estou?
— Estás... Queres a tua boneca?
— Não, Teresinha...
— Eu sabia.
— Sabias?
— Pois. Sabes?... ‘Tive em casa do Chico. Ele também está muito «tiste»...   — e inclinou a cabeça e ergueu as sobrancelhas, como a querer dizer que uma coisa implicava a outra.
— «Fisseste»-lhe mal??...
— Mal?
— Sim. Ele disse que tu és má... Mas tu és bonita...
O telefone tocou. A Teresinha estendeu a mão. Balbuciou um «’tá» muito triste, ouviu e, depois, estendeu-me o auscultador, risonha:
— É o Chico...
E, do outro lado do fio:
— A Teresinha, a filha da tua mulher-a-dias, esteve cá... Olha, querida, queria dizer-te... queria dizer-te que a minha irmã parte, de novo, para o Brasil, com o marido... Amo-te. Não me abandones. Já vou aí.


23 de Janeiro de 1969

7 comentários:

  1. O Chico não sabia...
    A Teresinha, na inocência da sua tenra idade, julgava que sabia mas na verdade ignorava o verdadeiro conteúdo...

    À narradora, a Luisa fazia-lhe lembrar, sem querer, a mesma cena, passada há uma dezena de anos, que lhe marcara a infância para todo o resto da sua vida.

    Viver ou estar junta com o Chico, que amava, com a presença próxima da Luisa, seria impossivel e só ela tinha o segredo e a explicação para isso.

    De outra forma seria reavivar a cada momento a dolorosa recordação que a fazia sofrer e que não seria compreendida se a tentasse explicar.

    Por isso, nessas circunstâncias, preferia desistir dele...
     
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    Os traumas de infância permanecem no inconsciente até avançadas idades e afloram ao consciente por um simples relâmpago, desencadeados por uma aparentemente inofensiva situação, fazendo o adulto recuar anos e anos da sua vida e sofrer exactamente as mesmas dores emocionais que o abalaram em criança.

    Qual de nós se poderá gabar de não ter ainda hoje no seu inconsciente resquícios traumáticos da sua infância?

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    História muitíssimo bem contada e melhor imaginada para abordar um tema complexo que me faz espantar por ter sido idealizada numa idade em que a Daisy era ainda uma jovem estudante...

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  2. Concordo com o Rui Felício. Muito bom.

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  3. A vida é assim.
    Doa a quem doer.
    Tonito.

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  4. Mais um belo conto da Daisy e que proporcionou um belo comentário do Rui Felício!

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  5. Encantador,Daisy!
    Dá para nos rever, em momentos semelhantes, de repulsa/amor...A tua sensibilidade corre ao longo de todo o conto.

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  6. Este conto da Daisy foi de tal forma dissecado pelo Rui Felício que pouco espaço ficaria para mais comentar.
    Dizer do meu apreço pelos contos da Daisy, pelo seu "acre-doce" com que envolve as crianças, é supérfluo porque repetitivo.
    Só um "pequeno" pormenor: a Autora deste conto tinha 19 anos quando o escreveu.
    Uma adolescente, afinal...
    Um grande beijinho, minha querida amiga.

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  7. Mais um belo conto. O Felício fez a sua análise exaustiva, que me leva a apenas corroborar o seu pensamento...
    Gostei e o que na realidade volto a repetir, é a maturidade de quem escreve assim, quando a vida ainda percorria a Primavera ...
    Abraço. Daisy

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