Ando mal do fígado ...
A Renault 4 L gemia o seu fado a caminho da Beira Alta.
Naquele tempo, ir a Viseu era uma espécie de aventura. Nós, funcionários dos
Serviços Florestais, também em número de quatro, lá nos balançávamos ao sabor
das curvas, meio nauseados. A missão era espinhosa. Fazer um enfadonho
inventário de um Serviço Estatal que passava para a nossa alçada. Nas curvas do
Bussaco, o Queiroga, meio a dormitar apesar de serem pouco mais de onze horas
da manhã, recordou o seu passatempo favorito – comer. O Carvalho também achou
bem um exercício de mastigação e o António Custódio, que guiava a nave dos
loucos, sorriu e acenou com a cabeça afirmativamente.
Eu não me pronunciei e apenas olhava a paisagem, percebendo
que chegar cedo a Viseu, seria já vaga quimera. Dali ao Bussaco era um pulo e
quando dei por mim, estava a desaguar à porta do Palace Hotel. Até ali nada de
preocupante. Preocupante foi ter aparecido o gerente, o Senhor Santos, no seu
fato elegante e um sorriso de franca hospitalidade. Num ápice estávamos dentro
da luxuosa e cara Unidade Hoteleira, convidados para almoçar.
Fiquei gelado. Apenas trazia no bolso dinheiro para os três
dias de estadia fora de casa, mas nunca para deixar a maquia logo na primeira
investida gastronómica. Um drama !!!
Já me imaginava numa rua da Viseu, a fazer
de estátua, com um penso num olho comprado na farmácia da esquina, a imitar
Camões e um chapéu aos pés para angariar dinheiro para comer, dado que naquela
época máquinas multibanco, era ainda um sonho vago.
Perfilados à mesa com
as costas cosidas às cadeiras de espaldar alto e servidos de talher de prata,
eu olhava o cardápio e os preços, fazendo mentalmente contas do dinheiro que
iria sobrar para os restantes dias. Táticamente, fui abolindo pratos.
Recusei a
sopa e bebi “Água do Luso” em vez de “Frei João” Reserva de 85. Não toquei no fenomenal
pudim resguardado numa campânula de vidro transparente, que mais
parecia a “Custódia de Belém”. O funcionário, de casaco branco e laço negro a
roçar o queixo, debruçou-se cerimoniosamente sobre mim e disse delicado:
- V.Exª, deseja uma fatia de pudim ?
E eu respondi, contristado e a engolir em seco:
- Não, muito obrigado, ando mal do fígado …
Mas comi obrigatoriamente um bacalhau com um nome esquisito e
tomei um café para a jornada.
Os meus companheiros de andanças, banquetearam-se “à grande e à
francesa” e não falharam nem um bule de chá fumegante, que por acaso nem era
para a nossa mesa.
Satisfeito com o meu refrear de despesas, de novo fiquei
siderado quando o amigo Santos com uma vénia pronunciada, disse que o almoço
era por conta do hotel. Até me apeteceu chorar! Quase estive tentado a
pedir-lhe que voltassemos ao princípio e viesse a sopa de repolho …
Chegámos a Viseu tarde e a más horas. Hospedados junto à Mata
do Fontelo, em quartos separados, fui dar com o António Custódio a passear em
cuecas e tronco nu no corredor dos quartos, com cara de poucos amigos.
Queixava-se que o Queiroga
tinha o rádio portátil em altos berros, que não o deixava dormir. Pé
ante pé, entrei no quarto e fechei o rádio. Dei um tiro num pé !!! O Queiroga
acordou e rosnou de mau feitio:
- Porra, eu para dormir tenho que ter barulho!!!.
Foram três dias, quer dizer, três noites, a ouvir a
esganiçada da Antónia Tonicha e voz arrastada do Alfredo Marceneiro. À segunda
noite, eu e o Custódio, tão fartos que estávamos do arraial que nem sequer era
minhoto, fomos para a Feira de São Mateus.
Enquanto a escultural Dulce Pontes atuava em palco, o que nos
fez pecar por pensamentos e palavras, fomos comendo, sentados numa mesa, uma
sopa de grão – de - bico com cebola. Azar o nosso. A diarreia que se seguiu foi
apocalítica. Ao terceiro dia, regressámos à bela Lusa – Atenas, exaustos das
correrias para a latrina, com o Queiroga sempre a dormir e a ressonar no banco
de trás da arruinada 4L - a fazer digestão atrás de digestão dos quilos de
bifes à cortador, frangos fritos, bacalhau à Zé do Pipo, ensopado de enguias à
moliceiro e cabrito à padeiro que naufragaram ao seu apetite voraz - com um
palito ao canto da boca que lhe dava um ar marialva e da mais fina fidalguia.
O inventário, esse, foi feito. E eu, no bolso, para recordar
a Feira de São Mateus e a Batalha Gastronómica do Bussaco, trouxe como
recordação um carimbo, subtraído de uma gaveta com os seguintes dizeres: “Está conforme”.
E estava.
Quito Pereira