Arte Xávega ...
Hoje, fui bafejado pela sorte. A “Máquina do Tempo”,
brindou-me com uma viagem aos meus verdes anos. Como que por magia, uma mão
sobrenatural pousou-me levemente no areal da Praia de Mira. Por segundos, olho
o mar revolto e penetra-me nas narinas o cheiro pleno da maresia. Desço então a
rua, em direção ao centro do povoado. Ali, naquele escaparate, vejo um jornal e
no cabeçalho leio a data – 15 de Agosto de 197O. Percebo que regressei ao
passado e, de imediato, me embrenho pelas ruas estreitas e atapetadas de areia,
dos palheiros de Mira. Sinto o cheiro do peixe fresco, a assar num fogareiro a
carvão. E a varina, de saia larga e rodada, que, sentada na soleira da porta de
madeira desgastada pelos anos, vigia os movimentos da rua estreita e escura.
Ali, junto da Barrinha, vejo um homem idoso, de sorriso doce. Magro, de olhos
azuis, reconheço – lhe a silhueta, neste contra - luz de fim de tarde.
É o João Maria, assalariado do Estado. É pai do César Bastos,
guarda – florestal da Mata. O César, fala pelos cotovelos e sempre que me
convida com uma vasta corte de seguidores, para uma sardinhada com batatas
assadas na areia e um bom vinho tinto encorpado, é sempre um repasto de fazer rezar
um herege. Já para não falar no Manelão brasileiro, com um anel de ouro em cada
dedo, que traz uma samarra pendurada ao ombro, mesmo no pino do verão. E o
Mário Arrais. O Arrais é de baixa estatura e atarracado. Usa o boné da farda às
três pancadas e bebe que nem uma cuba.
Dizem lá pelo povo de Mira, que é duro
de roer e quem atentar contra a Mata, tem que se medir com ele. Até o clube lá
da terra, se orgulha do Arrais, dos tempos em que foi atleta da instituição. Dava
pancada nos adversários sem cerimónia e a bola era, geralmente, as canelas dos antagonistas.
Era cada “chancada”, amigo Eurico – diz-me - enquanto vai mastigando mais uma cabeça
de sardinha.
E a Clara dos olhos grandes, de faces levemente ruborizadas,
que me olha do outro lado da mesa, num jogo de sedução. E eu, descarado na
minha irrequieta juventude, a rezar-lhe uma ladainha impercetível, a alimentar-lhe
o fogo da paixão. E quando no fim do almoço lhe pressinto no rosto a reprovação
do meu vil atrevimento, recebo em troca um sorriso, que fez o meu coração partir
à desfilada, qual cavalo selvagem a galope, de crinas ao vento.
Volto para junto da
lagoa. Sento-me junto à escola de natação do Heitor e do Rabina, na “Meia –
Laranja”, onde alguns miúdos, em algazarra, aprendem a nadar. Acolá, naquela
casa, vejo o Mestre Páscoa, com o seu ar sorridente e imaculada educação, que
me cumprimenta com deferência. Também a mulher do Mestre, junto à porta da
moradia, a vender fios de prata, para ajudar ao magro pecúlio caseiro. Agora, é
tempo de passar pelo parque de campismo.
O ondular suave da copa dos pinheiros,
as tendas coloridas, os candeeiros a gás, o cheiro do frango assado e das
sardinhas luzidias como prata. E a voz do mar, a cantar atrás das dunas. O
correr da água nas bancas de lavar a loiça. A luz difusa que se espreguiça por
entre a ramada do arvoredo. O vozear dos campistas na penumbra. O mistério do
risonho anoitecer e das tertúlias que à volta da mesa articulada, bebem a
jeropiga ou o copo de vinho, com que selam velhas e novas amizades. E o véu
negro do céu, polvilhado de estrelas cintilantes.
São horas de partir. De novo caminho devagar, junto das
barracas cónicas e coloridas da praia. O Sol escondeu-se no horizonte escarlate
e os barcos de proa erguida, repousam como guerreiros das batalhas do mar. Fecho
os olhos e parto nas asas do vento, em direção às montanhas. Abro os olhos e já
só vislumbro o perfil austero da Serra do Moradal. Regressei ao presente. Ao
presente da minha desesperança. Daqui, deste Lugar, constato que a minha
juventude partiu. E já nem sequer oiço a carícia refrescante e retemperadora, do
marulhar do oceano.
Quito Pereira