Nem todas as memórias são imateriais nem todas as lembranças são intangíveis. Aquilo que fica do passado poderá ser bem palpável e estar próximo, tão próximo que estendemos a mão ou o olhar e lhe tocamos, sentimos as formas, os sons e as cores. Os monumentos que são testemunhos de uma época, com as suas vicissitudes e os seus progressos, evocam o passado e são, por isso mesmo, uma memória. Uma biblioteca, um museu, uma canção são veículos de memórias, não só pelo que são, mas pelo que representam para cada um. Afinal, cada objeto visível, desde que associado a uma experiência e a um passado, transforma-se em memória(s), pelo que é e pelo que desperta.
Bem perto daqui, nas terras de Penacova, encontramos gigantes que nos transportam exatamente para tempos de memórias, tempos em que não se viajava de forma tão fácil e em que o isolamento era bem maior. São terras de coutos, antigamente sob a vigilância do Mosteiro de Lorvão, onde os declives e as encostas íngremes parecem que conduzem as águas e os ventos ao encontro do pão.
Devido às condições orográficas favoráveis e às ribeiras das terras de Lorvão, instalaram-se núcleos molinológicos que alimentaram milhares de bocas, por séculos, moendo a farinha com que se fabricava a base da alimentação. Outrora havia seis núcleos de vulto, sendo quatro de vento e dois de água. Estes localizavam-se nas ribeiras da Aveleira e de Lorvão, junto a pequenos açudes de água escura onde a canópia da floresta pouco mais deixava passar que uma réstia de luminosidade que distinguia o dia da noite. Aqueles localizam-se na Aveleira, na Portela, em Gavinhos e na Atalhada e são os que ainda testemunham a memória de um tempo.
Estrategicamente localizada, a serra que sobe para a Aveleira e o Roxo, e depois se estende para o interior, é a primeira grande elevação deste anfiteatro que se abre sobre os campos do Mondego e o mar. O vento que a brisa toca chega primeiro à Aveleira, depois passa em Gavinhos e move as velas na Portela. É o mesmo sopro infindável que baila com as velas de um, dança com as velas de outro, despede-se e seduz os moinhos que de longe já avista. Que histórias terá soprado de pano para pano, de gigante para gigante?
Vistos de longe, perfilam-se nas crinas das elevações, uns mais bonitos, outros mais antigos. Sabe-se que na serra da Atalhada estão aproveitados para turismo, que na Portela se encontram os mais bem restaurados e que em Gavinhos os telhados de zinco são a prova do uso tardio, até há muito poucos anos. Parece um paradoxo, mas não é: os moinhos de Gavinhos, por terem sido usados ainda nos anos finais do século XX, são os que estão menos bem conservados na traça original devido ao manuseio utilitário dos engenhos. Os telhados são quase todos de zinco – porque era mais fácil de aplicar e mais resistente ao tempo – e grande parte dos engenhos já usa peças de metal, principalmente os veios, as entrosgas – peças circulares dentadas – e os carretos.
Não importando como, o certo é que durante séculos foram estes moinhos a fornecer a farinha para uma vasta região e contar-se-ão por centenas de milhar as bocas que alimentaram. Hoje restam as sombras e as memórias e cada um destes gigantes é hoje um testemunho erétil da vitória de D. Quixote. Dele todos falam, deles ninguém se lembra. São gigantes mudos e quietos, sem alma e com as entranhas desfeitas. Resta-lhes a carcaça que resiste ao vento que lhes deu vida e os justificou durante tanto tempo. Agora não rodam, não agitam os braços.
Ah! mas os moinhos deviam, incessantemente, rodar e, assim, em cada volta da água, em cada volta do vento, haveria a promessa de pão e memórias na mesa e na mente das gentes.
Antonino Silva
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