A CARECA DO SÁ …
Em África, bebi muitos cálices de fel. A guerra, a doença e a
saudade, faziam parte do quotidiano de cada um de nós, dos que lá mourejavam
sem sentido, pela teimosia absurda de Lisboa. Porém, a camaradagem, o espírito
de entreajuda e a amizade, ajudavam a digerir aquele caldo de vinagre que nos
era imposto. E, na amizade, incluo as patifarias com que nos brindávamos uns
aos outros. Afinal, a única forma de afivelarmos no rosto um sorriso ou até uma
sonora gargalhada. E são esses momentos que prefiro recordar, com quem está
numa esplanada de praia, a beber em pequenos tragos, um cálice de Licor Beirão.
Avancemos pois. O homem tinha um nome simples e pequeno - chama-se Sá.
Apareceu-nos lá um dia vindo de Portugal, de mochila às costas, para iniciar a
sua campanha militar. Logo de início se percebeu que era vaidoso. Cultivava o
seu ego e era vê-lo horas ao espelho, a mirar-se e a passar o pente pelo
cabelo. E nós de lado, deitados em cima das nossas camas de sobrancelha
franzida, a pensar na melhor forma de lhe sabotar as peneiras. E foi o seu
feitio crédulo, o mote para mais uma pirataria. Um dia, quando o Sá penteava
pela milésima vez o cabelo e olhava o espelho pendurado num armário, o Pinto
disse-lhe:
- Óh Sá, tu estás a ficar careca, pá !!!.
Combinados uns com os
outros, nós confirmávamos a coroa de padre bem redondinha, que o homem tinha bem
à vista. Foi um drama! A partir daí, o Sá torcia-se todo, tentando com dois
espelhos, ver a parte traseira da sua luminosa cabeça. Na verdade, não havia
qualquer ausência de pilosidade. Mas a mentira, repetida tantas vezes, surtiu
efeito. Desesperado, procurou ajuda no enfermeiro. Debalde. O Azevedo só
percebia de ligaduras e quando dava injeções, espetava a agulha no mínimo,
quatro vezes - .uma carnificina !!!. De cabelos, percebia pouco ou nada. O
Amorim, que dava uns jeitos de barbeiro, também não tinha o elixir mágico que
devolvesse a alegria ao pobre Sá. Foi então que alguém lhe indicou o Alferes
Paulo, transmontano meio louco, que era o responsável pelo parque de viaturas do
quartel. O Sá, correu então para o seu salvador e da oficina trouxe a receita
que teria utilizar meticulosamente todos os dias de manhã. Esfregar uma pequena
porção de massa - consistente no couro cabeludo. E à noite lavar bem a cabeça,
antes de se deitar. Esperançado, o infeliz assim fez. Mas como Deus às vezes é
justo, quem sofreu fomos nós, os mentores da brincadeira, todos os dias no
refeitório a cheirar aquela pasta acre e luzidia a brilhar no cabelo do Sá. Há
tempos, depois de quatro décadas do regresso de Canjadude, encontrámo-nos num
almoço de confraternização militar. Sempre a mesma pose. Sempre a mesma
vaidade. Mas não cheirava a massa - consistente. Cheirava a água – de - colónia
barata de supermercado. Um enjôo !!! Nós os nove, que estávamos à volta daquela
mesa e que por coincidência tínhamos colaborado na patifaria, de novo fomos
penalizados pelos nossos pecados. Realmente, Deus às vezes é justo ...
Kito Pereira
Momentos interessantes que sempre acontessem para tornar menos pesados os ambientes de guerra, e as saudades da família...
ResponderEliminarA maneira tão elaborada como sugestiva nos são trazidas á sua leitura, proporciona-nos bons momentos de leitura agradável.
Um abraço Quito.
Emendo:acontecem
ResponderEliminarEstás a ver, Kito? Quem com careca fere, com pasta acre será ferido.
ResponderEliminarAh,se soubessem, à época, que óleo de rícino é bom para"fazer nascer pelos, cabelos...", até mesmo de cílios, sobrancelhas...(evitar passar no rosto, porque aí vão confundir com um gorila peludo) rsss
Chama a Mamãe