quinta-feira, 3 de junho de 2021

 

A CARECA DO SÁ …

 


Em África, bebi muitos cálices de fel. A guerra, a doença e a saudade, faziam parte do quotidiano de cada um de nós, dos que lá mourejavam sem sentido, pela teimosia absurda de Lisboa. Porém, a camaradagem, o espírito de entreajuda e a amizade, ajudavam a digerir aquele caldo de vinagre que nos era imposto. E, na amizade, incluo as patifarias com que nos brindávamos uns aos outros. Afinal, a única forma de afivelarmos no rosto um sorriso ou até uma sonora gargalhada. E são esses momentos que prefiro recordar, com quem está numa esplanada de praia, a beber em pequenos tragos, um cálice de Licor Beirão. Avancemos pois. O homem tinha um nome simples e pequeno - chama-se Sá. Apareceu-nos lá um dia vindo de Portugal, de mochila às costas, para iniciar a sua campanha militar. Logo de início se percebeu que era vaidoso. Cultivava o seu ego e era vê-lo horas ao espelho, a mirar-se e a passar o pente pelo cabelo. E nós de lado, deitados em cima das nossas camas de sobrancelha franzida, a pensar na melhor forma de lhe sabotar as peneiras. E foi o seu feitio crédulo, o mote para mais uma pirataria. Um dia, quando o Sá penteava pela milésima vez o cabelo e olhava o espelho pendurado num armário, o Pinto disse-lhe:

- Óh Sá, tu estás a ficar careca, pá !!!.

 Combinados uns com os outros, nós confirmávamos a coroa de padre bem redondinha, que o homem tinha bem à vista. Foi um drama! A partir daí, o Sá torcia-se todo, tentando com dois espelhos, ver a parte traseira da sua luminosa cabeça. Na verdade, não havia qualquer ausência de pilosidade. Mas a mentira, repetida tantas vezes, surtiu efeito. Desesperado, procurou ajuda no enfermeiro. Debalde. O Azevedo só percebia de ligaduras e quando dava injeções, espetava a agulha no mínimo, quatro vezes - .uma carnificina !!!. De cabelos, percebia pouco ou nada. O Amorim, que dava uns jeitos de barbeiro, também não tinha o elixir mágico que devolvesse a alegria ao pobre Sá. Foi então que alguém lhe indicou o Alferes Paulo, transmontano meio louco, que era o responsável pelo parque de viaturas do quartel. O Sá, correu então para o seu salvador e da oficina trouxe a receita que teria utilizar meticulosamente todos os dias de manhã. Esfregar uma pequena porção de massa - consistente no couro cabeludo. E à noite lavar bem a cabeça, antes de se deitar. Esperançado, o infeliz assim fez. Mas como Deus às vezes é justo, quem sofreu fomos nós, os mentores da brincadeira, todos os dias no refeitório a cheirar aquela pasta acre e luzidia a brilhar no cabelo do Sá. Há tempos, depois de quatro décadas do regresso de Canjadude, encontrámo-nos num almoço de confraternização militar. Sempre a mesma pose. Sempre a mesma vaidade. Mas não cheirava a massa - consistente. Cheirava a água – de - colónia barata de supermercado. Um enjôo !!! Nós os nove, que estávamos à volta daquela mesa e que por coincidência tínhamos colaborado na patifaria, de novo fomos penalizados pelos nossos pecados. Realmente, Deus às vezes é justo ...

Kito Pereira            

 

3 comentários:

  1. Momentos interessantes que sempre acontessem para tornar menos pesados os ambientes de guerra, e as saudades da família...
    A maneira tão elaborada como sugestiva nos são trazidas á sua leitura, proporciona-nos bons momentos de leitura agradável.
    Um abraço Quito.

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  2. Estás a ver, Kito? Quem com careca fere, com pasta acre será ferido.
    Ah,se soubessem, à época, que óleo de rícino é bom para"fazer nascer pelos, cabelos...", até mesmo de cílios, sobrancelhas...(evitar passar no rosto, porque aí vão confundir com um gorila peludo) rsss

    Chama a Mamãe

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