sexta-feira, 19 de novembro de 2021

 

GABU - antiga

A DOCE AMÉLIA …

Apareceu-nos no Gabú, vindo das altas terras da Guarda. Trazia nos ombros as divisas de furriel e cedo deu nas vistas pela sua gabarolice. Cabelo quase rapado, usava camisa justa de manga curta, de onde sobressaíam dois braços peludos, que mais pareciam dois troncos. Quer nas tertúlias do bar ou nas noites escuras da tabanca, a conversa do Almeida era sempre a mesma: a sua apetência por saias. Gabava-se de na Guarda ser um galã, e que nos bailes da região, destroçava corações. Um dia, numa passagem por Bissau, enquanto bebia uma “imperial” no café do Bento, reparei numa fotografia caída no chão. Apanhei-a. Era o jovem rosto de uma mulher. Olhei-a com curiosidade e logo me apercebi de uma verdade que não merecia contraditório: a miúda era feia como a noite dos trovões !!!. Tinha um rosto comprido e um queixo de rabeca, um nariz adunco e era ligeiramente estrábica. Meti então a fotografia na carteira, enquanto na minha mente se começou a formar uma ideia maquiavélica. Chegado ao teatro de guerra e num recanto escuro do Bar, convoquei o alferes Beirão e o furriel Mimoso para uma conversa. E foi ali, sentados  numa mesa que esboçámos a conspiração. O Beirão era da Guarda, e estava a poucos dias de ir de férias a Portugal. E a ideia peregrina era esta: o alferes levar a fotografia da rapariga, e remetê-la depois numa carta arrebatadora e apaixonada, endereçada ao Almeida para a Guiné. Analisámos a “canalhice” ao pormenor. A letra tinha que ser feita por mão feminina, e era preciso um remetente. Enquanto o Mimoso franzia a sobrancelha de tanto pensar, o Beirão resolveu de imediato o problema. Estou a vê-lo, alto e careca, pálido como uma vela de estearina e uma voz grasnada, a dizer: “ … a carta escreve a minha irmã … e o remetente pode ser mesmo o lá de casa …”. Com afinco e reboliço, debruçamo-nos então a escrever o teor da missiva, comigo à cabeça do pelotão. A  Amélia do Amparo -  assim baptizámos a miúda – dizia-se “vítima” de uma paixão arrebatadora pelo Almeida, e que tinha “revolvido o mundo” para saber do paradeiro do seu amado. Bem, a carta ficou um Mimoso mimo. Agora, já só faltava a irmã do Beirão copiá-la. Dias mais tarde, o alferes partiu de férias, levando no bolso um rascunho redigido por três trafulhas. E a fotografia. Depois, foi só aguardar, pacientemente, que a carta da “doce Amélia” chegasse. Como chegou. Após a correria na procura do nosso correio, eu e Mimoso encostámo-nos a um frondoso embondeiro, no meio da parada. E pelo sorriso triunfante do Almeida, percebemos que o Beirão tinha cumprido, na íntegra, a espinhosa missão. Regressámos então ao abrigo, enquanto o Almeida, sentado num tronco de árvore,  devorava a arrebatada mensagem, com os olhos fora das órbitas. Minutos depois entrou na nossa toca, triunfante, a acenar com a fotografia na mão, e a dizer fora de si: “ …  eu sabia… eu tinha a certeza … que ela estava louca por mim …óh malta… você nem imaginam o “marmelanço” que foi num baile de anos de uma amiga minha … ela toda derretidinha … vou já escrever-lhe !!!...”. E escreveu. Só que nunca houve retorno das inflamadas cartas do Almeida, como era óbvio. O destino era o caixote do lixo, em casa do Beirão. Mas o nosso “pinga-amor”, nunca deu o braço a torcer. Quando chegava a avioneta do Correio, percebíamos na cara dele o seu desencanto e o ar crispado…

O ano passado, lá para os lados de Fátima, os militares que durante várias décadas passaram pelos trilhos do Burmeleu e do Chéche, resolveram encontrar-se num almoço. Tinham decorrido quase quarenta longos anos. No repasto, apenas reconheci dois ou três militares daquele tempo e do meu tempo. E o Almeida. Ficou à minha frente, na mesa. Com um sorriso seráfico, fui perguntando se ele tinha casado com a “doce Amélia”. Disse-me que não, mas que quando regressou de vez a Portugal, ainda tinha andado “enrolado” com ela. Tanto tempo decorrido após o regresso da guerra, o Almeida continua com a mesma prosápia. Este ano, haverá, certamente, novo convívio. Espero não ficar na mesa dele. É que já não tenho paciência - não tenho mesmo - para o recomeçar da verborreia …

Kito Pereira.

        

 

1 comentário:

  1. Armadilhas de guerra pacífica em que o Almeida foi vítima gostoso e apaixonado.... frustado...
    Mas no próximo convivio tens que lhe contar como foi armilhado!!!!

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