quarta-feira, 3 de novembro de 2021

QUERO VER-TE VOAR Texto do Professor Antonino Silva

 Quero ver-te voar


O mundo, para alguns, é quadrado e, como tem cantos, essas pessoas sentem-se perdidas por lá, como se a vida as tivesse varrido e esquecido. Nós, os do mundo redondo, às vezes vemo-los a tentarem encontrar o centro, à procura do seu lugar na normalidade. Felizmente, muitos conseguem fazê-lo consigo mesmos e com quem os rodeia, a família e amigos. Estes são os vencedores da desventura, os bravos que conseguem marcar o seu fado e trocar as voltas a um destino fatalista.

O mundo é, porém, redondo para muitos de nós, onde as ordens não se trocam, onde expressões de amor de pais e filhos são naturais, onde as amizades vingam com a mesma naturalidade e certeza com que as sementeiras dão colheita e o granjeio dá frutos. É quase uma felicidade natural ter os braços de um pai ou mãe que acolhem, aqueles abraços que são tetos e as palavras que são cartilhas e sabem a bolos de aniversário. Quem tem a sorte de ter crescido nestes ninhos sente, na infância, que tudo parece certo e seguro e que nada tem o sabor do irremediável. E mais tarde, quando algo nos falha, quando as pessoas se vão e as lembranças se diluem, continuamos a observar que tudo esteve bem e as horas bateram certas, as boas e as más, conforme seria correto. 

A Cidália Sanona era uma das pessoas varridas para um canto do mundo. A pobreza extrema em que ela e o marido viviam parecia condenar à morte qualquer sonho, qualquer sorriso ou vontade. Tinham um  filho único, o Avelino, pequenote bem guixo, de olhos grandes e cabelo loiro espetado e cortado  pelo pai, às escaleiras, com a navalha da enxertia recebida num saco de adubo da Nitratos Agran. O amor era inversamente proporcional às posses materiais da família. Não tinham terras, não tinham casa e viviam numa loja de divisão única, paga com um dia de trabalho por semana na quinta do Chões, gente de posses da aldeia. O soldo dos restantes dias era para comprar o pão e poucas coisas mais com que se alimentavam. 

Com 6 anos, o Avelino entrou na escola primária, que funcionava numa sala velha da quinta da igreja e em cujo sobrado havia buracos quase tão grandes como os corpitos franzinos que perto deles se sentavam. Se o jeito para os estudos estivesse em relação direta com a pobreza, ninguém daria um grão de arroz pelo sucesso do cachopo; todavia, era nele que o professor Duarte via a centelha mais viva da vontade de aprender. A sua lousa era uma metade aproveitada de uma outra, que se partira e tinham deitado fora, e o petiz embrulhava-a com um pano grosso de lã, protegendo-a contra qualquer acidente. Nos caminhos para a escola, menino ouvia os cheiros, tocava os sabores e via os sons do mundo como nenhum outro.

O professor Duarte viu a criança por dentro e, em dezembro, quis falar com a mãe. “É que o seu filho é muito inteligente e é uma pena andar aqui a marcar passo. Se o deixasse ir fazer exame especial a Lamego ali pelo Natal, ela passava para a 2ª em janeiro e em outubro já iria para a 3ª, ou seja, faria duas classes num ano”. Os ouvidos de mãe ouviam com gosto, mas o que o professor disse depois angustiou-a: ”…mas terá de frequentar a 2ª classe em Lamego, não aqui”. E agora? Como é que haviam de arranjar? Como iria para a cidade? Com que roupas? Não dava, senhor professor, não dava!

Como o professor dava aulas de tarde na cidade, prometeu que o levava e trazia, mas pouco mais podia fazer. Por isso, a Cidália Sanona nem dormiu. No dia seguinte falou com o marido e prometeram a si mesmos que se descalçariam de tudo para poderem dar asas ao filho, porque seria ele quem os colocaria de novo num mundo redondo, sem cantos de miséria.

Assim foi: o Avelino acabou o liceu na cidade e veio para Coimbra, onde se formou em Direito, voltando já homem para a cidade do Douro como excelso advogado. Foi sempre o melhor entre os seus pares, respeitado e afamado conselheiro. 

Os pais, esses, sem deixarem de trabalhar, mal o filho se estabeleceu, encontraram o centro do mundo, sob a abundância da sua capa que, nos dias de vento, batia como as asas que os pais lhe tinham dado quando de tudo se descalçaram.

Antonino Silva


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